O leão covarde

Remoendo... corroendo, seria melhor. Um ácido desce pela minha garganta e vai devastando tudo que é sólido dentro de mim. Encosta no estomago e logo sua mucosa recusa, convulsiona e alerta ao cérebro que algo vai mal. E o cérebro? Vai mal. E o coração? Vai mal.

Os dias andam cinzas e eu também. Por vezes chove, eu choro. Por vezes um sol aparece, eu canto. Mas sempre chove e é cinza. Nesses dias, a noite cai mais pesada no meu quarto... eu adormeço mais rápido e mais intenso. Um verde da pitangueira insiste em querer invadir a minha janela, alegrar minha alma, tingir meu cinza de verde, mas as folhas nunca entram... no fundo, devem saber que não é prudente tocar em quem sente o ácido corroer por dentro.

Há o direito de ser louco e o direito de ser saudável. Me escolheram adoecer de lucidez sem ao menos me interrogarem se quero. A liberdade? Quem é essa filha da puta?, diriam eles... Existem coisas que precisamos aprender na marra. Precisamos?

As pessoas mentem. Muito. Desejam muito também, mas não conseguem fazer nada diante do desejo realizado. Paralisam-se. Correm. Fogem. Viram ratos. Falam das coisas que lhe são externas com uma propriedade de quem as sofre, mas logo promovem sanções duríssimas quando as experimentam superficialmente. Não querem mais brincar de serem heróis da resistência. A resistência se esvai pelo ralo só pelo sopro do menor vento nesse concreto de areia em que se apóiam, como palanque para seus discursos pseudoproprietários de si e do mundo. O concerto e a partitura dessa ópera não lhes soam agradável a partir do terceiro ato. É o momento em que o espelho se vira contra si mesmo e fala: “enxerga-te e apaixona-te, narciso”. As pessoas simplesmente não podem se apaixonar pelo que crêem repugnante. Do que não se orgulham, matam. Triste sina do homem: falta-lhe a diferença. Em tantos rostos, em tantas peles, a diferença presente e somos sempre os mesmos, esses rastejantes em busca do mesmo. Quando somos diferentes e conscientizamos de nossa especialidade, matamos. Suicidamos.

Alguns, tal como eu, nos desentendemos nas conexões rasas. E quando somos fisgados por intensas temáticas que, por fim, viram nada, nos autoprogramamos destrutivos. Autodestrutivos. Ácidos corroem por dentro, descem pela garganta até a mucosa estomacal, que convulsiona e pede auxílio, ao cérebro, que vai mal, ou ao coração, que também vai mal.

Acontece uma dança de chuva, cinza e cor lá fora, de medo, lágrima e canto aqui dentro. Por fim, tudo é um ritual: suicidemos o que não é igual, elogiemos o mesmo. Sejamos o oco, o frio, o malvado. O cruel. Porque da crueldade, extraímos o ser: tens força, e não és nula. Não te escutam, te matam. Pois que o que não é sagrado, profana. Mas porque o sagrado do profano não tem vez? Somos seres constantemente pagãos, mas no discurso da moralidade, profanamos ao caber em uma máscara do sagrado, que se quebra inteira e em cacos. Me cansam os cacos, as máscaras remendadas que se arrebentam. De certa forma, os dias ficam cinzentos, a chuva cai, tudo vai mal, mas o verde da pitangueira vêm à janela me mostrar a cor... a tentativa de mostrar que é possível fingir de que não é cinza a regência do dia, mas do verde. A máscara da natureza?

Podemos dizer que não, simplesmente diversidade, há espaço para todos. Mas bem sabemos que o que vem cinza do céu não é agradável como o verde das folhas de pitangueira. E que meu semblante contente não é nada mais que falsidade às lágrimas que choro quando a noite cai mais rápido no meu quarto, e que meu canto convulsionado nada mais é que pura dor do ácido que me corrói por dentro.