RECUPERAÇÃO
Recuperação
O trem estava apinhado de gente, me posicionei na porta de saída, e comentei com o companheiro do lado, : estou me sentindo uma sardinha na lata
__Eu também. Mas por pouco tempo, vou comprar um carro, pretendo raramente viajar de trens, foi à resposta e continuou falando, a maioria das pessoas, reclamam da situação, para mim está ótima, progredi bastante, nos últimos anos, cheguei nesta terra, sem nada, hoje tenho, um bom emprego, já comprei minha casa e agora vou adquirir um veiculo.
__Você está de parabéns,eu e a maioria estamos longe, de conseguir estas bênçãos.” - Comentei. O novo amigo rebateu:
__ É preciso ter coragem para mudar as coisas, se está ganhando pouco, procure um emprego melhor, estude, se atualize, ruim é ficar estagnado,- Falou com eloqüência e arrematou, usando, um tom suave na voz:
__ Também, se você prestar atenção estamos em transição, a tendência é melhorar tudo, a ditadura está por um fio, novas esperanças, envolvem a população, e completou:- “O importante è acreditar sempre.”
Estava diante de um otimista, naquele segundo semestre de 1981, o anseio popular por mudanças era enorme
Na minha mente as imagens da ultima mudança que fiz , veio a tona, deixara o emprego de bancário para vendas, pois com a família crescendo, a necessidade de aumentar os ganhos , se tornou prioridade,
Mas esse não era o maior motivo, minha atividade noturna em um grande banco, começou a ficar difícil, com problemas emocionais, procurei ajuda médica.
O clinico, com muita paciência, após verificar minha pressão e auscultar o coração, me inquiriu; __ Aparentemente está tudo bem com o Sr, qual o problema?
“Doutor, venho tendo muitos pesadelos, vejo bichos, as vezes estou no banheiro, e saio correndo com medo , não consigo ficar sozinho, vejo vultos, sombras, animais subindo pela paredes, tenho calafrios, febres, que vem e vão, sem razão, tonturas boca seca, ouço vozes estranhas, tenho a impressão que alguém vai me atacar, o sono pesado que sempre tive sumiu, misturo tudo.”
__ O Sr é dado a bebedeiras. ? __ Não Doutor, bebo socialmente.
“O seu sintoma, é de delírios tremem, de alcoolismo,” - Falei firme __ “Nada disso.”
O médico, calmamente disse; “vou lhe receitar uns calmantes, e encaminhá-lo a um psiquiatra, este profissional, vai saber definir o seu problema.”
Saí do consultório de cabeça baixa, - psiquiatra- ‘ será que o meu problema é tão grave assim?’
Quando comentei com meus colegas bancários o ocorrido, riram e brincaram, - “ cuidado, muitos internos dos manicômios, saíram daqui, é melhor mudar de profissão.”
Não tive duvidas, pedi demissão e me tornei vendedor, os sintomas desapareceram e embora meu estado interior flutuasse, não me causou preocupações.
Voltei a realidade, quando a composição abriu as portas , despedi do amigo e com passos apressados busquei a saída. Provavelmente visto do alto, aquela aglomeração de pessoas, poderia ser comparada com um formigueiro humano, todos apressados, indo para todos os lados.
Algumas pessoas, distribuíam panfletos, um Sr bem trajado, de aparência distinta com olhar brilhante, demonstrando disposição de ser útil, me entregou um papel que coloquei no bolso.
Dentro do ônibus, o abri, e mau li, as primeiras letras falavam de alcoolismo. Imediatamente o embolei e deixei cair debaixo do banco, este assunto não me interessava.
Os dias se passaram, na porta da estação me entregaram outros panfletos um deles novamente falava sobre o alcoolismo, desta vez o rasguei e joguei na lixeira mais próxima, e disse p mim mesmo, nada tenho a ver com problemas com bebidas.
Após a reunião da equipe de vendas, nos encontramos no bar mais próximo com os amigos de sempre, e entre cervejas e doses de caninha, falávamos sobre tudo, neste momento , qualquer assunto caia bem , nos tornávamos verdadeiros especialistas em futebol, política , medicina, agronomia, psicologia, e o tema que viesse Mas geralmente no outro dia, mal lembrávamos do que foi dito.
Na manhã seguinte, acordei muito mal, parece que minha cabeça ia explodir, o estomago embrulhando, para trabalhar foi muito difícil . ¬¬¬¬¬ A chacota dos colegas de trabalho, narrando os acontecimentos anteriores, me deixou profundamente contrariado, falei e fiz coisas ridículas, que não me lembrava, aquilo havia virado rotina.
Minha esposa veio me chamar atenção, dizendo; você esta passando dos limites, esta virando um bêbado inveterado,¬¬¬_ “Fica quieta mulher, não se meta na minha vida, eu sei o que faço. E controlo muito bem o que bebo”, respondi ríspido.
Na outra semana outro folheto caiu em minhas mãos, ao abri-lo, a palavra doentes para o álcool, me chamou a atenção. A sabedoria antiga me ensinou, que quando algo nos acontece pela terceira vez, temos que parar tudo e verificar, o porque. Desta vez não o descartei, li toda a mensagem.
Falava sobre os efeitos nocivos, do alcoolismo, e convidava para assistir uma palestra sobre o tema, dizendo, que por mais grave que fosse, tinha solução.
Informava, também das reuniões diárias , de sustentação, onde o recuperando dava seus depoimentos, com o intuito de permanecer abstêmio.
Curioso, compareci. A sala de tamanho médio, estava quase lotada, cadeiras simples mas confortáveis exatamente as 19,30 horas, teve inicio.
Reconheci de imediato o coordenador, era o Sr que vi distribuindo panfletos na estação Ele se apresentou. __ Meu nome é fragata, sou um, alcoólatra em recuperação, coordeno esta reunião do Instituto Fraternal de Laborterapia, Instituição sem fins lucrativos, que tem por objetivo, recuperar e dar apoio a dependentes químicos , de drogas e alcoolismo. Não temos restrições, ou preconceitos, quanto a raças, cor, condições sociais, religiões, de forma que sempre iniciamos nossos trabalhos, com um minuto de silencio, permitindo assim que cada um, faça sua oração ou o seu pedido, no seu foro intimo, de acordo com sua fé.
Ao termino do minuto silencioso, começou a falar.
Resumiu rapidamente a sua historia, quando estava se tornando um bebedor compulsivo conheceu,o I F L e entrou em recuperação, se considerando por isso um afortunado, logo em seguida, convidou outro Sr para dar seu depoimento.
Um homem de idade madura e aparência agradável, explicou que infelizmente não tivera a mesma sorte, quando descobriu a doença, a sua vida estava totalmente destruída, tanto que teve que formar outra família, pois a primeira, não queria vê-lo nem pintado de ouro.
Rimos um pouco com a sua sinceridade, ele continuou; sofreram tanto com minhas bebedeiras, que ficou impossível o relacionamento, hoje felizmente em recuperação e abstêmio a mais de 10 anos, vivo bem com minha família atual.
Fiquei surpreendido com a coragem, daquelas pessoas , que expunham seus problemas e dramas mais íntimos publicamente, compreendi que esta era a forma que se sustentavam, para se manterem abstêmios e evitar a primeira dose.
Meu cérebro, fervilhava, com estas informações, Então a dependência . É doença?
O único tratamento, é evitar a primeira dose? Tive vontade de perguntar em alta voz, mas me contive
No final o Sr Fragata,nos convidou, para a palestra, que aconteceria no sábado as 17 horas, renomado médico, um dos fundadores do instituto, falaria, sobre a doença,quando quis crivá-lo de perguntas, gentilmente, esclareceu . O ideal è você comparecer amanhã, e assistir o que o doutor Pellicano, vai dizer.
A PALESTRA
Neste momento, tenho que pedir desculpas, a quem estiver lendo, seria uma temeridade, tentar repetir aqui, as palavras e ensinamentos dados por este grande ser humano, de inteligência brilhante e coração generoso; naquele dia memorável.
E mesmo que repetisse palavra por palavra, é impossível, transmitir, todo o entusiasmo e vibração com que foram pronunciadas.
Escrevo apenas aquilo que a minha mente confusa e embotada, captou, naquela época mas que modificaram , totalmente o meu modo de viver.
Com palavras simples e acessíveis, o doutor Pellicano, nos cativou, iniciou, explicando a palavra, Laborterapia, terapia através do trabalho, os internos da CAM, comunidade de apoio mútuo em Itapecerica da Serra, não só, recebiam cuidados médicos de psicólogos, dentistas, nutricionistas e etc.
O exercício físico, de acordo com a capacidade individual, funcionava como uma grande terapia, executavam tarefas como por exemplo, hortas, que auxiliava na manutenção da comunidade, e esclareceu que todo tratamento era gratuito, feito por voluntários.
_”Todo trabalho digno, é uma verdadeira benção” afirmou.
__”O alcoolismo é doença, progressiva e incurável, progressiva, porque quando a propensão a beber se instá-la, não se pára mais, esta é a razão, que faz o bêbado, ingerir cada vez mais.¬
Incurável, porque, não existe no nosso mundo, medicamento algum que o faça parar, as células se viciam, e querem cada vez mais e mais álcool.
Só, existe um tratamento, Evitar a primeira dose.
Todo o nosso esforço, se consiste em levar esta informação, e conscientizar o dependente a vencer a vontade de beber a cada instante, evitando a primeira dose, O maior entrave ao nosso objetivo é o orgulho, a maioria dos doentes se acham capazes de controlar o seu vicio, enquanto não entendem esta realidade, a recuperação se torna impossível.”
Fez uma pequena pausa, para assimilarmos a sua explanação.
Minha dúvida estava esclarecida; compreendia agora as bebedeiras do meu pai, não conseguia entender, como aquele homem de excelente caráter, incapaz de falcatruas e honestidade a toda prova, sendo para mim e meus irmão, um exemplo de dignidade, de repente, se mostrava fraco começava a beber e não parava até cair.
Entendi finalmente, o porque, de tantos amigos , e parentes se acabarem no vicio.
O grande homem continuou a sua explanação, falou com palavras simples, os efeitos, corrosivos , que a ingestão das bebidas alcoólicas causavam, no fígado, pâncreas, bílis rins coração, e no sistema nervoso central, explicou a causa das tremedeiras
Quando, começou a falar sobre os efeitos nocivos, nos neurônios cerebrais , nos causou forte impressão. As mazelas são mais terríveis que poderíamos imaginar.
Sua voz, assumiu um tom mais grave e enérgico ao falar dos danos causados no feto de pais beberrões, neste caso afirmou.
¬_”As conseqüências são imprevisíveis, o mínimo que pode acontecer, nascerem crianças, com o sistema nervoso afetado, sendo possível, todo tipo de anomalias, até bebês com graves dificuldades orgânicas”.
Fiquei a imaginar, até que ponto, a sociedade estava prejudicada por esta doença, Assim mal prestei atenção no restante da palestra, mas quando terminou e iniciaram as perguntas, fui o primeiro a levantar a mão.
__” Após anos de abstenção e totalmente recuperado, podemos voltar a beber novamente?” Perguntei
Ele sorriu __ “ Isto não existe, já foi dito, esta doença é incurável, podem passar 10 20 30 50 anos ou mais, se o sujeito acreditar que está livre da doença, e inadvertidamente tomar um pequeno gole, com toda certeza, despertará dentro do seu organismo, bilhões de células sedentas por álcool, que será impossível resistir. Por isto dizemos, que para o bebedor, um dedal é o mesmo que um tonel”.
_”Só há um tratamento, evitar a primeira dose”.
Outras mãos se levantaram, não consegui, continuar com minhas perguntas.
Ao final o aplaudimos de pé, o seu altruísmo e dedicação nos deixou impressionados.
Continuei, a freqüentar assiduamente as reuniões de apoio e sustentação, com o passar dos dias, me senti mais forte e equilibrado, lá bem no fundo, do meu entendimento, duvidava desta questão de evitar a primeira dose, as festas natalinas se aproximavam.
Já havia decidido, no meio das comemorações, testaria o meu domínio sobre o vicio
Em verdade, não acreditava que tinha propensão a beber, mas estava completamente enganado
Evitava, amigos e ambientes que me reportassem a bebedeiras, até as saladas, que continham vinagres, não consumia, esta orientação, aprendera, dos relatos dos companheiros em recuperação.
Certo dia, almocei com colegas de trabalho, ao recusar a salada, carregada de vinagre, um deles inconsciente da situação, me desafiou__ “Deixe de frescura, você acha que um pouquinho de salada, vai lhe fazer mal, pode comer” .
Realmente acreditava que nada aconteceria, acho que estou com excesso de cuidados, ‘domino perfeitamente minhas vontades’, disse para mim mesmo.
No restante do dia nem lembrei do ocorrido, ao fim da tarde, um certo torpor me envolveu, a vontade de ir para casa se tornou enorme, no caminho para o I F L, um desejo enorme de tomar aguardente, tomou todos os sentidos, imagens de um copo carregado de pinga, escureceu minha visão.
Senti o liquido descer pela garganta, me causando grande prazer fictício.
Felizmente, não estava a pé, dirigia um carro da empresa onde trabalhava, por isso , me mantive abstêmio, deixar o veiculo, no meio do transito engarrafado, era inviável
Comecei a sentir calafrios, as mãos suavam, o desejo aumentava, mais e mais. Iniciou dentro de mim, uma confusão mental terrível, fortes pensamentos me dominaram.
Não seria melhor tomar logo um ¨gole¨ e parar com este sofrimento?
Já ensaiava uma desculpa, quando as criticas surgissem, meu avó bebia, meu pai também, porque não eu? A imagem dos meus filhos pequenos, vieram em meu socorro, o que aconteceria com eles, também tinham a sina, de ter um pai alcoólatra?
Será que no futuro se perguntariam, o porque, do genitor ter se tornado um farrapo humano? Como seriam suas vidas? Sofrimento. Vergonha, brigas , infelicidades. Misérias.
Por mais que eu procurasse razões para me manter sóbrio e abstêmio, o desejo aumentava mais, o corpo todo tremia, estar preso no transito me impediu, de correr, e entrar no primeiro boteco que aparecesse.
O suor frio aumentou, visões de copos de vodka, cachaças,uísques,surgiram. Compreendi, a gravidade do momento, se cedesse agora cederia sempre, tinha que vencer.
O transito começou a fluir, procurei fixar o pensamento, no meu trabalho. Chegar no Instituto se tornou vital. A luta interior continuou, porque sofrer tanto? É melhor beber logo..
Novamente imagens da família ganharam o meu campo mental. Ao chegar no I F L, a reunião já havia começado, pensei que o coordenador barraria a minha entrada, mas com um olhar, e em frações de segundos captou o meu estado interior deplorável.
Interrompeu o que falava, e aguardou pacientemente, um dos voluntários providenciar uma cadeira, a sala estava lotada. Mal ouvia o que diziam, tinha ímpetos de sair correndo, e entrar no bar mais próximo . Meu coração começou a bater descompassado, o corpo todo tremia.
Tinha decidido, ao sair dali, iria tomar um gole de qualquer coisa. O encontro estava no seu termino, provavelmente o Sr Fragata, chamaria o ultimo depoente da noite, torci para que não fosse eu.
Me contrariando, convidou-me para falar, minhas pernas tremeram, tive medo de ao levantar cair, a fraqueza estava enorme, desta vez a lembrança dos meus filhos, foi fortíssima, o terceiro deles, nascera a poucos dias.
Um clarão iluminou a mente; será que estava abandonado a mercê das minhas fraquezas? A providencia Divina sempre vinha em socorro aos aflitos, era isso que todas as escolas religiosas diziam. Porque não me auxiliar nesta hora difícil?
Supliquei, em segundos o amparo Divino
A resposta foi instantânea, senti, como se alguém invisível me abraçasse, e me transmitiu, energias salvadoras e energéticas, meu corpo se restabeleceu, desapareceram as tremedeiras e suores, respirei fundo, o coração voltou ao seu ritmo normal, poderosa vontade de viver, surgiu no meu interior.
É impossível descrever ou explicar, este acontecimento, em toda a minha vida, nem antes ou depois, fui tocado assim pela divindade, até as fibras mais intimas da alma.
Um bem estar indescritível, tomou o meu organismo, levantei-me, e de pé, comecei a narrar um pouco da minha estória, da minha ignorância em relação ao vicio, e da duvida da frase, evitar o primeiro gole.
Comentei o efeito que um pouco de vinagre na salada, causou no meu corpo, e a grande batalha travada, contra o desejo de me embebedar nas ultimas horas.
Contei da benção, que as imagens dos filhos me trouxeram, principalmente da súplica que fiz, e como a providencia Divina de imediato me socorreu, naquele exato instante
Terminei, afirmando a minha certeza, que daquele instante em diante e no restante da aminha vida, me manteria sóbrio.__” Acredito firmemente , que meus filhos não conheceram o drama de ter um pai dominado pelo vicio de beber”, foram minhas ultimas palavras. E agradeci o apoio de todos.
As pessoas ficaram emocionadas, havia no ar vibrações harmônicas de paz e felicidade, Fragata veio ao meu encontro e me deu um forte abraço me agradecendo pelo relato, afirmando
__”Esta noite os anjos vieram nos visitar.”
Por mai de um ano freqüentei assiduamente as reuniões de sustentação, e até hoje quando sinto , vacilar a minha segurança em me manter abstêmio, procuro assistir no IFL e AA os depoimentos dos companheiros em recuperação.
As lembranças deste dia magnífico e inesquecível, estão guardadas, nos recônditos mais profundos do meu coração. Embora algumas seqüelas, tenham ficado no meu cérebro, comemoro feliz o natal de 2009, com todos os filho. Tenho plena certeza que cometi vários erros ao educá-los, assim como todos os pais fazem
Mas minha maior alegria e felicidade, é saber, que os cometi, completamente sóbrio.