A CARTILHA

Aprendi e aprendo muito com a deficiência física. A limitação imposta pela paralisia cerebral, tem me feito crescer diariamente, não só no aspecto físico propriamente dito, mas principalmente no âmbito moral.

Apesar de ter um nome que sugere outra coisa, (meu cérebro não parou, como o leitor pode atestar) a PC (só para os íntimos) vem sendo minha grande professora.

Humildade, compreensão e empatia, são atualmente, as virtudes colocadas em pauta, na infindável lista de lições da infalível cartilha.

Até o momento, pareço estar me saindo bem, a duras penas, é verdade. Mas a natureza não dá saltos e com paciência, outra virtude ensinada exaustivamente, vamos seguindo o curso natural da vida.

Meus atuais colegas de classe são, sem dúvida alguma, os melhores da minha vida, no curto, porém recheado histórico escolar da professora PC. Com certeza, os passageiros usuários da linha de ônibus 967A - Pinheiros/Imirim, formam minha melhor turma.

O único problema é que a prô tem marcação comigo. Ela só chama a minha atenção! Já reclamei com ela, que respondeu dizendo para procurar o Diretor, que por sua vez, avisou- me que era a PC a melhor professora para um aluno rebelde como eu. O Diretor tem razão. Se não fosse verdade, seguramente teria uma cartilha mais tranquila para seguir. Cada um tem a cartilha e a professora que merece.

Não tem jeito. Tenho de admitir que ela tem me posto na linha.

Nas ocasiões em que eu menos espero, lá vem a tia PC:

- O ônibus tá lotado Marcellinho. Trate de ser humilde e pedir seu lugar, educadamente, é claro.

- Mas professora, e se a pessoa for deficiente também?

- Olha lá, seu colega levantou, depois de sua outra colega ter sido bastante deselegante com ele.

E me sento, um tanto contrafeito é verdade, porque eu sempre espero a boa vontade alheia, confiando na consciência, embora por diversas vezes, já tenha tido provas de que não funciona assim com todos os meus colegas.

Bom, sentado a história é outra. Vamos à próxima aula:

- Idosos no ônibus Marcellinho. Lembre- se, pode sobrar para você, afinal, nem parece que estou presente. Quando está sentado, você é perfeitinho.

Os coleguinhas mais precipitados, já vêm de dedo em riste:

- Não vai levantar, folgado?

O sangue sobe. Mas a prô está a postos.

- Compreenda que ele não percebeu a limitação e responda com educação.

Assim tenho feito. Explico, quase sempre, (ainda não aprendi tudo) calmamente:

- Sou deficiente físico, meu amigo.

Mais uma aula, a prova e... Falta pouco para fechar essa matéria.

Estou chegando em casa. Uma mãe com o filhinho no colo. Próxima aula: Empatia.

- Ô Marcellinho, já estamos na Casa Verde. Ao que me parece, niguém cederá lugar à mamãe com o bebê. Você aguenta.

- Mas querida professora, por que eu? Olha o menino no banco reservado. Inclusive, ele é mais novo do que eu.

- Ele ainda não aprendeu a lição da empatia. Fez a prova e não passou. Essa é a sua prova.

E me levanto, mostrando - me apto a seguir avançando nas provas.

Mas nem tudo são espinhos na Cartilha não. Há vários momentos de muito humor. Engraçados demais.

Esses dias a professora deu uma aula de observação. Tudo o que eu tinha de fazer era observar, esperar e rir. Dentro da sala de aula sobre rodas, logicamente.

E passei a observar o comportamento dos colegas. Alguns infantis, outros desinformados, outros apenas engraçados.

Uma vendedora de carapuças subiu no ônibus (sala de aula) e tomou assento a meu lado. No ponto seguinte uma senhora de mais de 60 anos dá sinal. Pedindo a jovem vendedora que lhe cedesse o lugar, obteve êxito, embora tenha ouvido da vendedora:

- Já tem velho sentado no reservado, né? Tem de ser eu!

Como já sou gato escaldado, apenas ri e não comprei a carapuça*.

Chegando perto do ponto onde eu iria desembarcar, levantei e observei um menino que segurava a mão do pai. Provavelmente encantado com a beleza dos meus joelhos, o menino só tinha olhos para eles. Uma freada brusca e pronto. Pobrezinho. De boca na barra de apoio.

- Pronto Thiago, agora você aprende a segurar firme!

Assim reza a Cartilha da professora PC, contratada pelo Diretor, Senhor da Vida. Vivência, aprendizado e alegria. Essa é a Cartilha que me ensina a viver!

*o trecho faz referência à crônica A CARAPUÇA, publicada no RL em 05/09/09

Marcello Santos
Enviado por Marcello Santos em 16/03/2010
Reeditado em 13/02/2011
Código do texto: T2141831
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