NOS TEMPOS DO "GOIÁIS"
Aqueles dias vão ficar para sempre. Férias na escola e a gente já pensando um mundo de coisas. Coisas que na verdade eram só uma: a fazenda “Tabocas”, preferida por causa de Helena, preferida por causa de Lurdes... primas-amigas-irmãs, por todo o sempre.
Íamos de trem. No trem que vinha de Goiás (ai, que lugar longe, meu Deus!). Eu ouvia dizerem “Goiáis” e pensava no fim do mundo. Havia crimes, roubos, pessoas que desistiam de casamentos e todas fugiam “lá pro Goiáis”. E eu tinha toda razão, aquele lugar era o mais longe, o mais escondido que alguém pudesse imaginar e quem fosse para lá estaria a salvo de qualquer ameaça! Era de lá que vinha o nosso trem...
Nas “Tabocas” a gente era livre. Ninguém mandava, ninguém proibia. Todo mundo solto, feito bicho que cedo cedo aprende a se virar sozinho. Não vê o caso dos gatos, dos cachorros, das aves? Algumas instruções básicas: como caçar o próprio alimento, se defender ou bater asas e depois... Adeus! Cada um por si, nesse mundão grande e cheio de perigos... (ao contrário do ser humano que cisma de proteger para o resto da vida...)
O trem apontava na curva. Tinha cara de palhaço, em riscos amarelos e vermelhos. Vinha monstruoso com seu apito de menino doido, assobiando para que os desavisados não achassem que dava tempo de atravessar a linha. E não dava mesmo! Porque quem achou não teve tempo nem de pedir um copo d’água. Virou notícia triste e era de arrepiar ver o povo contar o que restou do moleque e seu tabuleiro de cocadas...
“Tabocas” à vista, e dias de felicidade! Rio, pescaria, mato a perder de vista. O dia inteiro, campeando, subindo em pedreira, arriscando a vida na laje que escorregava feito quiabo (e a gente deslizando sem ter medo de nada); moagem no engenho, melado e rapadura apurando nos tachos de cobre maiores que o próprio engenho. O cheiro de cana, a doçura vermelha, borbulhando sobre as labaredas e eu imaginando, “coitado de quem cair ali...”
À noite, era só escuro. A casa de muitas janelas (eu não cansava de contar, por não acreditar que uma casa pudesse ter tantas!) e um mundo irreal. A cozinha sem fim, de tijolos brancos, virava palco de histórias. Ali se reuniam a família e os agregados, numa espécie de pequeno clã. Era hora dos “causos”. O fogão à lenha, nas últimas brasas, era só o que alumiava, querosene era artigo caro (e raro) e lamparina só na hora de ir pra cama, pra não errar o caminho naqueles corredores ermos até os quartos...
É dali, das noites escuras das “Tabocas”, que minha imaginação cresceu e virou muitos casos de mistérios, nos relatos ouvidos da peonada. Também tinha noite que era terreiro de lua. Muito mais bonito ainda! Porque aí a gente ouvia até o gemer das almas penadas, o miado da Pintada, logo ali, na serra atrás da casa, lugar aonde ninguém ia, pois se fosse era morte certa, não voltava nem pra contar o caso... Foi muito dali, que tempos depois as recordações não me deram sossego. E viraram livro...Muito mais pra exorcizar as sombras e assombrações que povoaram minha infância de uma beleza que contando ninguém acredita...