"TROCANDO EM MIÚDOS"
A sala e os móveis são os mesmos. Na parede pastel, o quadro de um artista famoso da terra, prêmio que ela ganhou num concurso literário... O tapete de formas geométricas, o vaso de palmeira-ráfis a um canto, a vitrola, os discos de vinil, conservados feito relíquia, tudo antigo, mas brilhando de novo...
No ar, a voz de Chico “Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu”. Ainda como naquele tempo. Nas noites quentes de verão, portas e janelas abertas, eles ficavam ali à toa, jogando conversa fora, falando das bobagens do dia, rindo como quem ri de nada.
Ela o admirava. Achava que ele sabia coisa demais. Ele se encantava por ela. Achava que era a mulher predestinada porque tinha o nome começando com a letra marcada em linhas na palma de sua mão. Vivia lhe dizendo isso... E existia amor, um amor lindo.
Naquela sala mesmo falavam de livros. Histórias que liam aqui e ali. Grandes autores, grandes filósofos, ou então histórias bobas mesmo, coisas que povoavam suas lembranças. Também cantavam juntos. Velhas canções de Elis, Chico, Caetano, Raul, Belchior, tudo tão decoradinho, que riam de si mesmos...
Ela olha em volta e sente a sala intacta. O tempo passou e qual água de rio que leva a areia... em silêncio, o desgaste se fez. Nenhum se deu conta (ou se deu, não soube o que fazer). Quando viram era tarde demais. Nada mais havia a ser feito. “Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer. Aquela aliança você pode empenhar, ou derreter”.
Sem choro e sem vela, o amor se desfez. Numa alegria estranha de um caminho cumprido, cada um seguiu seu rumo. Sem lamentos, sem mágoas, sem ressentimento. O desamor é a melhor borracha para apagar uma história entre duas pessoas. Se tiver que haver um fim que seja por desamor... “Eu bato o portão, sem fazer alarde. Eu levo a carteira de identidade (...) e a leve impressão de que já vou tarde...”
Ela suspira, sorri sem saudade e toma uma decisão: A sala está muito desgastada, afinal já se foram dez anos, vai trocar tudo esta semana mesmo...