Alma lavada

Já ouvi essa expressão, dita por algumas pessoas em vários lugares diferentes, sem haver sido impressionado por ela, ou melhor, sem ter alcançado a profundidade que os seus proferidores pretendiam, ou simplesmente pensavam, enfatizar. Certa vez, num ônibus, uma senhora gorda dizia para outra a seu lado que, numa altercação com uma vizinha, saíra vencedora, feliz da vida e de ... alma lavada. Não me recordo do motivo da altercação, mas devia ter sido por motivos comezinhos, já que não houvera rompimento de relações, conforme deu a entender no curso da conversa com a companheira de assento no ônibus. Em outra vez, foi no parque municipal, saída da boca do vendedor de pipocas para os ouvidos de um senhor de meia idade, provavelmente freguês de longa data, que, ouvindo com atenção o caso contado pelo pipoqueiro, caiu numa sonora risada. O caso contado tinha por fundamento uma aposta sobre jogo de futebol do qual saíra vencedor o lanterna do campeonato. Não cheguei a perceber onde se achava a causa primeira ou fundamental do gozo expresso na cara do pipoqueiro quando concluiu o caso dizendo que ficara de... alma lavada. Como vêm, casos diferentes, mas com igual happy end.

Depois desses dois casos, que me pareceram os mais expressivos, participei de um outro, contado por um açougueiro, amigo noventa por cento ( amigos cem por cento somente os de um mesmo lado do balcão) e por tal razão, mais do que simples ouvinte, assumi a qualidade de interlocutor. Contou-me ele que o fato, não simples caso, se passara numa cidade do interior, onde ele vivia naquele tempo,

quando, intimado pelo delegado de polícia a depor numa denúncia, infundada por sinal, de um freguês “fominha”, fôra por ele humilhado com uma descompostura e, além de não lhe ter permitido falar em sua defesa, ainda o ameaçou de prisão. Já em casa, cheio de raiva e por não poder se vingar, caiu numa terrível depressão que o fazia chorar e o obrigou a faltar ao trabalho por mais de uma semana. Mas Deus é grande! quem aqui faz, aqui paga; não demorou muito tempo, aquele miserável de delegado, se julgando superior, e se mostrando valentão, querendo ele mesmo prender um cara que fazia arruaça na rua, passou a descompor o tal sujeito e, sob voz de prisão, tentou conduzi-lo à delegacia. Mas o preso, reagindo, se agarrou com ele e, dando-lhe várias facadas, matou-o ali mesmo na rua como quem mata um animal sem dono.

Aí eu perguntei: como você ficou sabendo do acontecido e como recebeu a notícia?

Eu estava trabalhando no açougue, quando um freguês veio me contar; larguei tudo e corri para o lugar do crime, e como ri!..., quase bati palmas, me julguei o homem mais feliz do mundo naquele dia. Fiquei de alma lavada

Pelo desabafo do meu amigo açougueiro, fiquei entendendo melhor o sentido de alma lavada. Percebi que tem muito a ver com vingança. Neste caso, ainda que não consumada de próprio punho, meu amigo realizou a sua pela mão assassina do outro, tal como se fora praticada por sua encomenda.

Dito isto, também tive minha oportunidade de lavar a alma, não no mesmo grau do caso do meu amigo, devo ressaltar, mas ainda assim a tive bem lavada. Vou contar: Premido por necessidade fisiológica, comum na minha idade, vou ao banheiro duas ou três vezes durante a noite; a primeira, pelas onze ou pouco mais; a segunda, pelas duas ou pouco mais da madrugada, e a terceira, quando ocorre, já pelas cinco, ou seis, quase na hora de levantar da cama e fazer o café, tarefa que assumi no lugar da consorte, exonerada da obrigação por problema de saúde. Pela freqüência das idas noturnas ao banheiro, sempre nas mesmas horas, é na batata, lá estão elas em pontos estratégicos, umas em cima da mesa da pia da cozinha, outras no chão perto da cesta de lixo, e uma sempre em cima do fogão. Já observei e anotei os pontos e a hora da presença delas. Estou falando de baratas, já notaram, não? Pois é...pelas onze, na primeira ida ao banheiro, elas se posicionam muito distanciadas entre si, tática usada para escaparem mais facilmente das chineladas deste velho, hoje sem a agilidade dos áureos tempos. Quase todas escapam, mas, às vezes, e por sorte, consigo matar uma, o que é muito pouco numa comunidade de alta proliferação como é a deste nojento ortóptero da ordem dos blatários, de hábitos noturnos e invasor contumaz das moradias do homo sapiens, seu principal predador, desde o tempo das cavernas, ou antes dele, pois sabe-se que é contemporâneo dos dinossauros, quando nem mesmo o pitecamtropo existia como ancestral deste ser inteligente e racional que somos nós. Mas eu falava de barata e tenho portanto que me ater ao assunto objeto desta crônica, senão poderá resvalar para um tratado de baratologia, especialidade de baratólogo e não de um simples baratófobo como eu. Voltemos, pois, às baratas: como já falei, venho anotando os lugares e a hora da presença delas, e assim é que, lá pelas duas da madrugada, quando vou ao banheiro pela segunda vez, passo sorrateiramente pela cozinha, acendo a luz, e lá estão elas: mudaram de lugar, mas estão mais desatentas, provavelmente já fizeram sua farra de guloseimas de invisíveis restos no chão ou em cima da pia; localizo uma, mestra na arte da camuflagem está escondida debaixo da borda de um prato pirex de cor um pouco mais clara que a dela, mas mesmo assim, só com muita acuidade pode ser enxergada no seu esconderijo. As outras três, que estão nos pontos estratégicos previamente marcados, notaram a minha presença e combinam as rotas de fuga sob a chefia ou liderança de um barataço, ou barataça (acho que são baratariarcas as mandonas do baratario). Se elas têm suas táticas, eu tenho minha estratégia, que é ficar imóvel e atentamente observar os sinais que fazem entre si; vi, por exemplo, o sinal de antena da chefona indicando, para uma, um ponto a noroeste que eu me certifiquei tratar-se de uma estreita fresta na porta da cozinha; e, para as demais, um ponto ao sul, que notei se achar no armário debaixo da pia, esconderijo provisório onde permanecerão até que eu me ausente da cozinha, pois sabem que não vai até ao ponto de me agachar de madrugada a minha sanha baraticida. Tudo está anotado e já devidamente estudado o meu modo de agir na devida oportunidade. É aguardar com paciência, não há pressa; levantar-me de madrugada tem motivo mais premente sobre o qual já falei no começo. Minha estratégia vai ser a seguinte: hoje, na minha primeira ida noturna ao banheiro, passarei pela cozinha e farei um movimento brusco para assusta-las e faze-las correr para os seus esconderijos. Aí, coloco um pouco de doce de leite em cima da mesa da pia, bem espalhadinho em forma circular do tamanho da moeda de um real, na certeza de que elas exultarão com o achado e se entregarão ao comensalismo, em disputa com algumas intrusas formiguinhas doidas por doce, por via do qual se tornarão menos alertas, portanto um fator a meu favor. A forma circular da doce isca as farão juntar-se no pequeno espaço e assim me facilitarão o assalto que farei na minha segunda ida noturna ao banheiro, lá pelas duas da madrugada. Volto então para a cama, mas nem durmo mais de tão ansioso pelo momento da batalha. Chegou a hora: lá vou eu com um chinelo no pé esquerdo e o outro na mão direita (sou destro, devo informar ) com destino ao banheiro, precisamente às duas horas e quinze minutos da madrugada, de onde, depois de aliviado, passo para a cozinha já de chinelo em punho e braço levantado pronto para a investida. Imóvel, acendo a luz e miro diretamente a isca em cima da mesa da pia: lá estão elas como eu esperava, juntas em torno do círculo adocicado; são cinco, incluída a chefona no comando do grupo. Pé ante pé, de chinelo em punho, me aproximo devagar, devagarinho, e... plaf. Todas exalam o asqueroso último suspiro, nenhuma escapou. Ganhei a batalha, mas sei que a guerra não acabou, o inimigo logo voltará, pois é certo que tem recrutas sendo treinados para futuras investidas. É esperar; mas, por hoje, fui o vencedor; saí do bom combate sobranceiro e... de alma lavada.

Deocastro
Enviado por Deocastro em 12/03/2010
Reeditado em 12/03/2010
Código do texto: T2134071