Fim do Mundo
Na tarde de sol forte e céu azul a moça de cabelos curtos e crespos conclui o check-in sem pressa, sentando-se em seguida à mesa do café, onde vê o namorado sorrindo lá dentro do notebook, com quem se encontrará a menos de um terço de dia dali. Sopra-lhe um beijo gracioso e apaixonado, ao que se juntam promessas de amor eterno. As marcas de batom nas pontas dos dedos lambuzam a blusinha branca que ela veste na altura do ventre quando massageia para a câmera o rebento dos dois.
Assistindo à preocupação da moça com a mancha, levanta-se da mesa ao lado um simpático velhinho, chapéu de palha na cabeça, barba rala e óculos de aros finos. Caminha até ela portando um lenço que acabara de comprar e oferece o que ela julga desnecessário. No entanto aceita o mimo com a sensibilidade materna, um pouco sorrindo, um pouco sem graça. Trocam duas ou três expressões espirituosas e de lá o velhinho retorna à sua mesa, onde recolhe carinhosamente a sua senhora, saindo juntinhos.
Vão-se costumeiros, no mesmo passo, os braços dados, os dois sorrindo, satisfeitos: ele, inflamado pelo gesto bondoso, ela, orgulhosa pela cortesia no marido. Andam vagarosos pelo corredor, por onde vai à frente um sujeito apessoado, arrastando uma grande bagagem sob um par de rodinhas. Vai imberbe, terno importado, sapatos lustrados. Nem olha para os lados nem vê o menino que brinca a poucos metros dali com um boneco e dois carrinhos, enquanto a mãe reclama no guichê.
Tem o cabelo mal desenhado, a cabeça está descolando do pescoço, a camisa soltou um botão, mas é seu brinquedo preferido, embora não caiba nem na Porsche preta nem no conversível vermelho que abre as duas portas. A mãe ralha por ter se afastado um pouco dela, com razão: defende os seus direitos e zela a criança, mas é uma só. A mulher do guichê se gasta por dentro. A companhia quer desempenho mas a burocracia emperra o seu tempo, emite um ticket invalidado e agora deve prestar contas à consumidora, corrigir o problema no sistema intermitente e sorrir ao mesmo tempo.
Impaciente está a faxineira, que voa pela primeira vez. Por perto está o filho diligente, que viera até onde a fila estancava, atrás de porquês. Tem as mãos grossas e calejadas de argamassa e um diploma que lhe imputava embarcar a mãe em visita ao nordeste sem embaraços. Segurando uma bolsinha a faxineira respira fundo três vezes como a colega lhe ensinara. Solta o ar pela boca na direção do filho, mandando-lhe adjunta uma silente esculachada: toda aquela demora, toda aquela gente, toda aquela confusão e o moleque vagueando, ao contrário de estar ao seu lado.
Ao seu lado brinca o menino a gosto solto, regalado pela impotência da mãe em lhe puxar pelas orelhas naquele instante. O boneco perde a cabeça, mas não há remédio melhor para o menino que a chegada dos avós: toma o chapéu dele, sobe aos braços dela e os três se juntam à mãe que ainda discute no guichê e ainda atende ao celular a ligação do marido, ansioso à sua procura.
Orientado, o marido chega todo imponente, empurrando a sua grande bagagem sob o par de rodinhas, a aura luzindo importância, a roupa impecável no corpo. Segue aos cumprimentos até o filho e os sogros e junto da esposa apresenta um cartão que resolve de imediato a demora na fila.
A faxineira caminha para dentro do avião a curtos passos, admirando a cortesia das comissárias e os estofados que julga mais confortáveis que os dos trens. Senta-se à janela por cima da asa e treme um pouco antes de um pequeno suspiro: está recostada num grande ônibus que voa e tudo então é desconhecido, à exceção da família que empacara na fila: a mulher e o menino com o chapéu de palha, o velho e a velha mais atrás e o marido empinado por último. Solta um ar de desdém ao grã-fino, essa gente que tem o rei na barriga. Olha os passageiros todos para mais um lampejo de chacota antes que se sente ao seu lado a moça de cabelos curtos e crespos, em cuja blusa branca ainda resiste uma manchinha de batom. Do chão para as nuvens pouco tempo se passa; do céu para a turbulência decorre apenas um instante que ela avalia ser o fim do mundo e o avião que decola não aterrissa, na tarde de sol forte e céu azul.