UM FATO E SUAS VERSÕES
O FATO:
Av. Paulista, 6:30 da manhã. Um Kadette sem frente enterrado num Pálio sem traseira. (Não fosse o local inusitado e os vidros pelo chão, algum desavisado poderia pensar que se tratava de um novo lançamento automobilístico, dado o encaixamento quase perfeito dos veículos. Algo do tipo “Padette” ou “Kálio”.)
Horas mais tarde na delegacia:
A VERSÃO DA MULHER:
- Esses homens dirigem que nem uns bárbaros, com pressa de chegar não se sabe bem aonde. Onde já se viu dirigir desse jeito? São uns loucos!! Uma ameaça a vida alheia. Deviam caçar a carteira de motorista de gente assim, multa é muito pouco!! Quando eu tenho que chegar pontualmente em algum lugar, como era o caso hoje, saio mais cedo de casa, não fico tirando segundos judiando do acelerador.
- Minha senhora, deixe de tantos comentários e considerações e relate-me os fatos - interrompeu o delegado já exausto em final de plantão.
- O fato é que esse homem vinha dirigindo que nem um louco. Eu brequei e, dada a alta velocidade em que o carro dele se encontrava, ele não brecou e entrou na minha traseira, destruindo meu carro, que por sinal era semi-novo. É um irresponsável!
- Não é bem assim, seu delegado - interveio o homem já cansado de ser tão insultado.
A VERSÃO DO HOMEM:
- Essa senhora simplesmente brecou na minha frente. Decididamente mulheres não deviam dirigir, são péssimas motoristas, pisam no breque por qualquer coisa.
- Chama um gato de qualquer coisa, seu desalmado?
- Calma, minha senhora, agora é a vez dele falar.
- Pois é, seu delegado, eu vinha tranqüilamente pela avenida, devia estar a uns cinquenta quilômetros por hora, talvez sessenta, no máximo. De repente, sem mais nem menos um carro breca na minha frente. Tentei brecar, mas já era tarde demais. Se tem uma coisa que nenhum homem pretensamente moderno fala é que mulher dirige mal, mas que a maioria pensa isso e só não fala pra não ser tachado de machista e atrasado, isso lá é verdade. A maioria delas anda com a fuça no vidro e o pé no breque.
- Já chega. Me informaram que há uma testemunha. Que entre - ordenou o representante da lei.
A VERSÃO DA TESTEMUNHA:
Sob o comando do guarda, adentra a sala de inquérito um homem de uns trinta e poucos anos, humildemente vestido, segurando um gato no colo. Muito mal à vontade, devido à situação que estava vivendo e, sobretudo, devido ao lugar onde se encontrava, o homem foi logo dizendo:
- Dr. delegado, eu não fiz nada. Eu tava indo pro trabalho, já ia toma o metrô. Quando olhei pra rua vi um gato atravessando, ainda pensei “meu Deus esse vai morrê enfarinhado, vai virá adesivo”. Quando olho pra trás vinha um carro que ferveu os pneu de tanto frea. Daí a pouco, outra freada e “pum” foi uma batida horrível, vidro quebrando e tudo mais. Corri e peguei o gatinho, esse daqui ó, e comecei a ouvir uma brigaiada danada. Daí a pouco apareceu um carro de polícia perguntando se tinha alguém machucado. Me perguntaram se eu tinha vido o acidente e foram logo me enfiando no carro junto com esses dois aí e disseram que eu era “distimunha”.
Ouvidas as partes envolvidas, você pode escolher o final desse episódio. Não se trata de nenhum “você decide” moralista. Trata-se de um ajuste de expectativas entre leitor e texto. É uma escolha que você pode fazer, dependendo do mundo em que prefira estar.
Se você for daqueles caras atolados na realidade que escolhe para ler nas férias “O estrategista em ação” ou “Como vencer na vida em doze lições” você deve escolher o final 1:
FINAL 1
A VERSÃO DO DELEGADO OU “UM MISTO DE BOLETIM DE OCORRÊNCIA COM RELATÓRIO FINAL DE CASO”:
“As 7:30 do dia 21 de novembro de 1996, compareceram nessa delegacia para prestar depoimento o Sr. Afonso da Costa Neto, brasileiro, casado, portador do RG 7.543.234 e da carteira de habilitação nº 0504516270 e a Sra. Neide Aparecida Gomes Sarmento, brasileira, casada portadora do RG 9.543432 e da carteira de habilitação nº 0812343543 envolvidos num acidente de trânsito sem vítimas, constando apenas danos materiais. No referido acidente colidiram os veículo Kadette chapa BTK 9257 de propriedade do primeiro citado e um Pálio placa BOP 5152 de propriedade do segundo citado.
O primeiro declara que o Pálio dirigido pela senhora supracitada parou de repente, sem nenhum motivo aparente, o que acabou por ocasionar a colisão, dada a ausência de tempo que este declarante teve para intentar o paramento total do veículo.
A senhora supracitada alega que o carro dirigido pelo senhor supracitado vinha em alta velocidade, razão pela qual este não conseguiu frear seu veículo a tempo o que veio ocasionar a referida colisão.
Como testemunha do acidente, compareceu a esse 25º distrito o Sr. Vicente Alves da Silva, brasileiro, solteiro portador da carteira de trabalho nº 87654 série 00119 - SP, que declarou que a senhora supracitada freou seu veículo para evitar o atropelamento de um felino - doravante denominado gato -, e que o senhor supracitado não conseguiu frear a tempo vindo a colidir ser veículo com o da Sra. supracitada. A testemunha compareceu a essa delegacia trazendo consigo o gato, suposto causador do acidente.
Dado que gatos não possuem rendimentos financeiros que possam ressarcir materialmente as vítimas envolvidas, encaminho a título de sugestão decisória que cada um arque com seus próprios prejuízos.”
Sendo tão somente para o ocorrido,
Dr. Etevaldo Vianna Dias
Delegado assistente da 25ª delegacia.
FIM DO 1º FINAL
Agora, se você for daquelas pessoas aficionadas por boas histórias, que nas férias escolhe para ler “O senhor dos anéis” ou “O mistério do cachorro morto”, talvez seja melhor optar pelo 2º final:
2º FINAL
A VERSÃO DO GATO - O ÚNICO QUE AINDA NÃO FOI OUVIDO NESSE CASO:
“A noite tinha sido péssima, muito frio e muito barulho de forma que dormi muito mal. Acordei ainda cansado, com um rombo no estômago e logo olhei em volta a cata de uma caça. Não anda fácil arranjar comida nos dias de hoje. Ratos parecem que não precisam mais sair dos buracos para comerem (onde estarão arranjando comida?) e, como os buracos são pequenos para gatos entrarem, temos tido dificuldades para comer. Após alguma busca, avistei uma presa e me pus a caminho da merecida refeição. Não podia perder essa oportunidade. Qual não foi o meu susto ao ouvir um chiado estridente seguido de um estrondo horroroso. Primeiro paralisei, senti meus pelos eriçados, depois segui em frente, correndo o mais que podia. Quando dei por mim, minhas patas não estavam no chão, eu estava no ar envolto por um membro comprido apoiado sobre uma pequena montanha aconchegante, embora mal-cheirosa. Ainda com o coração disparado, fiquei na dúvida se usava as garras ou os dentes. Resolvi aguardar os acontecimentos. Senti um afago que começou na cabeça e foi se prolongando pelo restante do meu corpo. Embora assustado, pois estava uma confusão enorme a minha volta, resolvi ficar ali parado, porque me pareceu um lugar seguro. Para dizer bem a verdade, fiquei sem saber o que fazer. De repente, me colocaram dentro de uma coisa fechada que eu até já tinha visto por fora mas que de dentro era muito maluca. As coisas começaram a passar rápido pela minha frente, mas como eu continuava sendo acarinhado tentei me acalmar. Saímos daquela coisa esquisita e entramos num lugar mais esquisito ainda. Todos neste lugar usavam a mesma roupa e eu achei aquilo muito estranho. Gatos são diferentes, uns são malhados outros de uma cor só, alguns tem pelos grandes outros pequenos, mas aqueles seres pareciam todos iguais e a cara deles não era de bons amigos. Depois de um tempo, o ser que me carregava mudou de sala e começou a falar com um outro. Numa hora ele me mostrou pro outro e ficaram falando não sei o que. Passou mais algum tempo e me tiraram daquele lugar. Finalmente resolveram me por no chão, já não era sem tempo! Parecia ser bom aquele ser que resolvera me soltar, mas nem tanto assim: me fez carinho e tudo mais, mas comida que é bom nada. Agora aqui estou eu a procura de uma nova caça. Não sei se já disse isso, mas comida anda difícil nos dias de hoje...”