Navegar é preciso...
“O cansaço toma conta do seu corpo. Sente-se só, sem um aconchego, uma migalha de atenção...”
Fernando Pessoa tomou essa antiga frase dos navegadores portugueses para afirmar que o necessário é criar. “Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade”.
Quem se sente só esqueceu atrás de si a grandiosidade de sua vida. Perdeu de vista a vasta extensão de sua existência primorosa, esqueceu o curso do seu barco-vida, é um navegador à deriva de si mesmo.
A vida vai muito além dos pequenos embates do dia-a-dia, das solidões mais isoladas, do deslizar sem precisão nas águas agitadas e medíocres do cotidiano.
O ser criador faz a opção por viver seu universo no sentido de conceber aparentemente do nada as mais eloquentes formas de comunicação e arte. Assim navega no seu mar original e utilitário para a humanidade.
Quem deixa de criar olha para a vida e a vê como uma coisa insignificante. Por isso, jamais desista de alimentar seu espírito criador. Crescer em convívio com as artes, desenvolver, imaginar e produzir o novo, mesmo travestido de velho. Esse é o exercício primordial da arte de navegar para longe do mar da solidão.
Conheço um rapaz que nasceu com uma terrível doença congênita. Não tem as duas mãos, mal anda, fraco e desprovido de vigor físico. Ninguém imagina que esse moço possa dar suas pinceladas de luzes na vida, todos os dias, escrevendo, pintando e caçando as esmeraldas da arte em meio à lama e ao lodo de uma sociedade medíocre. Quem procura, quase sempre encontra. Com a cabeça recheada de estímulos subjetivos, vai o moço deficiente físico traçando suas metas gloriosas, teclando com a ponta extrema do membro superior, sem dedos, as mais belas poesias e os mais complexos programas de informática. Ele dispõe da arma potente e sofisticada da força interior que impulsiona os seres criadores.
Julgo imperativo o ato de criar. Porque “navegar é preciso”. A humílima pessoa que sou resplandece todos os dias pela manhã, quando sento na frente do computador e escrevo qualquer coisa. “Meu destino é vendaval que me sacode em todas as direções”, mas meu norte está lá, nos múltiplos planos cuidadosamente traçados pelo anseio das aspirações futuras. Vivendo de mísera aposentadoria do avarento sistema previdenciário, considero-me um sujeito rico pela capacidade produtiva. Não há um só dia em que não produza um texto, um poema, uma idéia para teatro ou cinema, um projeto qualquer nesse sentido. Arrostando as dificuldades financeiras e de saúde, vivo da espectativa de sonhar com o surgir de uma ideia luminosa, ou nem tanto, mas que me faça esquecer do angustiante problema da sobrevivência nesse vale de lágrimas. Porque “navegar é preciso...”