Carnaúba
Veio para a minha residência de forma insólita. Meu filho caçula o escondeu em um canto antes de travar comigo um diálogo de súplicas.
- A senhora deixa ele ficar?
O pedido não admitia recusa. O olhar a penetrar a minha alma e a querer confirmar que eu não seria um carrasco para o ser que ele protegia.
Diferente do pai que não permitiria sequer um questionamento, a minha pessoa representava naquela situação a sua única tábua de salvação.
Fiz um muxoxo com o canto da boca.
- De novo, Alexandre? Você sabe que o seu pai não vai aceitar!
- A senhora deixando, ele aceita.
Meu filho sabia por experiência própria que o assunto delicado ora tratado podia ser resolvido através do meu veredicto. O pai falaria algumas palavras de zanga, porém depois se renderia com um misto de insatisfação e aborrecimento.
- Se a sua mãe permitiu, o que é que eu posso fazer?
Fiquei ainda enrolando por alguns minutos.
Entretanto, Alexandre renitente não saiu de perto de mim.
Simulei uma cara de poucos amigos.
- Onde ele está?
Alexandre se animou feliz.
- Bem ali no cantinho. Eu escondi ele. Vem ver!
Segui meu filho imaginando o que teria de enxergar.
Deu pena só de olhar! Um ser diminuto e raquítico, de pelos ralos e espetados tremia de frio ou de fome.
- Será que não vai morrer?
Alexandre balançou a cabeça em sinal de discordância.
- Dei um pedaço de pão para ele e comeu tudinho!
Não haveria outro jeito. O ser conquistara a minha compaixão.
- Está bem! Mas é você quem vai cuidar dele, viu? A sujeira que ele fizer...
Fui interrompida por gritos de alegria.
- Oba! Pode deixar! Eu cuido dele e limpo tudo!
E Carnaúba ficou em casa.
Vocês devem estar imaginando a razão do estranho nome.
Quando meu filho o trouxe para casa, notadamente o bichinho se encontrava em avançado estado de desnutrição. Pele, pelos escassos e espetados, ossos e uma enorme barriga. Pensei que não sobreviveria.
Meu marido ao perceber a nova presença na residência quis protestar, contudo ao notar que eu havia dado a anuência para a permanência do recém chegado, apenas murmurou contrariado:
- Além de ser um bichinho muito do feio tem o pelo espetado que parece a palha da carnaúba...
E todos em casa concordaram com a descrição e o nome.
Carnaúba sobreviveu.
Quando chegara era triste e quieto. Semanas passaram e os cuidados e alimentos dispensados a ele pelo meu filho o pôs a correr por todo o quintal. Recuperara a energia e a vontade de viver.
Meses vieram e Carnaúba não era nem a sombra do que fora outrora. Crescera bastante e a barriga enorme e desproporcional ao tamanho do corpo desaparecera por completo. Os pelos ficaram espessos e assentados. Não pareciam mais as palhas de uma carnaúba. O nome permaneceu para lembrarmos de como ele era quando viera morar conosco.
Anos se sucederam e infelizmente em um triste dia Carnaúba não apareceu para tomar o seu café da manhã. O procuramos por toda parte e o conseguimos ver estirado no quintal do vizinho.
Estava morto. Poderia ser uma picada de cobra ou um veneno de alguém da vizinhança que não gostasse dele.
O fato é que encerramos a história de Carnaúba o enterrando no quintal.
Um gato enorme, de pelos brancos e brilhantes arrancou lágrimas de toda a casa. Estávamos acostumados ao “velho” Carnaúba que conseguira sobreviver ao abandono e à extrema desnutrição.
Contudo, diferente dos outros gatos, Carnaúba não possuía sete vidas. De acordo com o meu filho, Carnaúba tinha somente duas vidas. E por isso, não resistiu.