Espelho
Crianças, em casos menos graves. Alguns eram velhinhos, embora não fosse geriatra. Deitaram-se à minha frente homens e mulheres de todas as expressões, raças, rostos, envergaduras e olhares diferentes acorridos por testemunhas de toda espécie de trauma.
A leitura dos seus cortes, perfurações, pancadas e queimaduras em vários graus me davam indícios de fios de vida aos quais eu os puxava de volta, em alguns casos sem sucesso. E ali, na janela da alma, é que encontrava a condição da sobrevivência de cada um.
Entre os conscientes, os que se deixavam balangar pela maca sucumbiam por falta de estima, futuro ou desistência. Seus olhares opacos, perdidos em quaisquer paredes, evitavam cruzar a firmeza ou a esperança dos meus. Os que agarravam meu braço e me sacudiam a experiência como filho de Esculápio, enervados, campeadores de espada em riste brigando contra a morte, atento a tudo e a todos, voltavam para casa, diferentes.
Entre os desfalecidos, o corpo amarrado e a alma quase solta, cabia-me averigua-la abrindo-lhe as pálpebras. As sombrias e desalentadas não estancavam sob a minha sutura desesperada e não podia trazê-las de volta quando queriam partir. E ali não adiantavam as minhas primeiras barbas brancas, nem minha alta estatura, nem meu anseio pela salvação.
E ali, naquela tarde, diante de tanto espalhafato, sirene, multidão e tragédia, dor e fuga, perseguição e morte, deitam-se à minha frente os meus cabelos cacheados, o mesmo corte, o mesmo comprimento.
A mesma barba castanha por meio de onde surgiam os primeiros fios brancos, quase raspada como a minha. A mesma estatura, alta, proeminente, reconhecida em seu ofício, destacada por honra ao mérito, escancarada por diligência a si mesmo. O mesmo anel dourado no anular, a mesma constituição, os ombros largos e o mesmo porte atlético, machucado sem que tivesse culpa.
Pelas pálpebras se abrem os mesmos olhos verdes, expressivos, cheios de vida, passado afincado, futuro promissor, presente suspenso. Pelas pálpebras me vem o terror da simbiose, viagem de corpos, troca instantânea de almas como se a ferida fosse a minha, a camisa rasgada fosse o meu número, sangrando do meu peito sobre os mesmos pelos negros, de onde gritava por vida um coração desesperado. E o desespero era o meu, em pé ou deitado talvez viéssemos da mesma fôrma e talvez não vivêssemos o mesmo tempo se a nossa competência não se encarregasse de salvá-lo.