Damião Ramos Cavalcanti
CATARSE
Há quem viva de catarses. Em contínua purificação de vida - sei lá! -, entonada de tragédias, tabus ou, quem sabe, de remorsos, até quem se ensoberbece pela experimentação e superação das dores físicas ou morais. Estas últimas são melhores comprovantes de que, apesar de tudo, a ética existe, os valores subsistem e chegam a perturbar quando não são levados em consideração ou quando não postos em prática.
Há quem viva em catarses, como numa permanente autopunição, uma mortificação sem sentido, que alguns medievais praticavam com a autoflagelação: chicoteavam-se com o açoite como se estivessem torturando seus corpos. Dir-se-ia que se tratava de masoquistas, dos que se deleitam com a própria dor; melhor do que aqueles que se deliciam com o sofrimento alheio, os chamados de sádicos. Estes, logo cedo, demonstram, a partir dos tempos de menino, tendência à perversidade: vi com os próprios olhos quem pendurasse gatos pelo rabo; enganasse os sapos com brasas acesas ou ferro incandescente para que se queimassem quando os engolissem por ignorada atração ou esmagasse com o sapato a mais bela borboleta. Lembro-me de um dos frequentadores da praça que colocava lâminas de barbear no escorrego do “parque infantil”. Essa má índole não desaparece totalmente, ressurge mais tarde nos calabouços, nas inquisições da vida, nos campos de futebol ou de concentração como cientistas nazistas a tocarem com a pinça o nervo ciático dos judeus como objetos de experiência; nos regimes políticos de exceção, onde e quando se sobressaem verdadeiros especialistas em extorquir pela dor a confissão do inconfessável, fazendo falar o que eles querem ouvir: gemidos, palavras mudas sem significado, o sopro da voz.
A catarse, não. É quase espontânea, ditada talvez por uma força mórbida ou por um sentimento indelével de culpa. Não ofende ninguém, tão somente quem fere a si próprio, o corpo, perdendo os momentos que deveriam ser felizes para vivenciar o horror que não somos obrigados a viver. É são quem não ignore que é pelo corpo que sentimos prazer e, infelizmente, também sofrimento. Do sofrimento é preciso aprender a sofrer o que não se pode evitar. Mas, a vida feliz é encontrada no caminho inverso, dos que procuram a distância e a ausência da dor e a proximidade de tudo aquilo que se encontra na felicidade. Embora reconheça, no lido O Tempo Redescoberto, de Proust, que “A felicidade é salutar para o corpo, mas só a dor desenvolve as forças do espírito.”