EMBRUTECIMENTO E SENSIBILIDADE

Hoje foi somente mais um dia trivial deste nosso século. Século do tudo ao mesmo tempo agora, que corre e corre. Século nosso cheio de demandas e urgências. Nos nossos dias, cometemos até a impossibilidade lógica de querer tudo para ontem!

Quem segurará esse trem bala? Como isso tudo será em 2020, 30, 40, 50? Nossa humanidade resistirá a essa velocidade desesperadora que já hoje nos consome?

Em meio ao atribulado cotidiano, à sua trivialidade enlouquecedora, embrutecemos e nos desumanizamos. Sim, eu também admito que a cada dia embruteço mais e mais. Em muitos momentos posso dizer, como Chico Buarque, que “hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito”...

Contudo, não me culpo por isso. Aliás, não culpo ninguém. O embrutecimento é uma espécie de couraça que desenvolvemos para enfrentar a insânia urbana diária sem nós mesmos enlouquecermos de vez. São tantos os sofrimentos e os absurdos que apreendo em minha labuta diária, que se não fosse esse envoltório da brutalidade que conscientemente desenvolvi certamente hoje eu estaria internado em algum hospício.

Seres humanos que não se adaptam à velocidade e ao embrutecimento do nosso século sucumbem, não resistem ao caos. Na melhor das hipóteses uma pessoa, se possuir condições, muda-se para o interior. Outra hipótese é a depressão. Aquele que não se adapta e percebe que não consegue esse grau de embrutecimento necessário para viver nas metrópoles entra em depressão.

Como podemos nos excluir da brutalidade que desenvolvemos quando passamos em frente à miséria e a ela somos indiferentes? Não seria humano, cristão, ajudar os “irmãos” que passam por dificuldades? Será que vamos levar aquele pobre-diabo que fede a metros de distância para nossa casa?

Claro que não!

E eu não estou defendendo que devamos fazê-lo, contudo acredito que há uma forte contradição naqueles que se dizem cristãos e são indiferentes a esse fato.

O embrutecimento, para viver em nossos dias, para viver nas cidades grandes em nosso século é um ingrediente necessário para que possamos sobreviver. E falo novamente, admito, eu também sou um bruto.

Hoje, em meu trivialíssimo e banalíssimo trabalho, houve por um momento uma suspensão dessa brutalidade que em mim habita. Não, não quero dizer com isso que sou bom, que sou sensível... Longe de mim dizer isso. O sentimento simplesmente brotou de maneira espontânea.

Atendi a uma mulher que me relatou estar com câncer. Ela era educada e articulada, sabia o que estava falando e tinha esclarecimento. Ela, como me solicitava uma espécie de benefício, disse que eu poderia ver toda a documentação comprovando que ela estava mesmo com a citada doença.

Nem quis ver os tais documentos. O semblante da mulher já denunciava a sua condição de enferma. Sua extrema magreza, sua pela amarelada, o seu cabelo ralo e suas grandes olheiras já eram um documento mais que explícito da desgraça que havia se instalado em seu corpo.

Além do câncer, a mulher tinha dois filhos. Um deles estava com ela, um garotinho de seis anos. Enquanto eu digitava os dados dos documentos do filho, ela me contava sobre sua sorte. Divorciada, com a doença já relatada, o tratamento quimioterápico, os efeitos colaterais...

Para se ter uma idéia do sofrimento da enferma, ela chegou a me dizer que quando fazia as sessões de quimioterapia, não podia tomar água gelada ou na temperatura ambiente, mas somente água morna. Perguntei o porquê e ela falou que se tomasse água em temperatura ambiente ou gelada, sua garganta fecharia lhe causando grande dor e possibilidade de asfixiamento.

Disse-me que chorava com sua condição.

E nesse entremeio dos relatos dessa mulher e o meu digitar no teclado do computador, vieram-me à mente diversos pensamentos.

Logo que percebi que a mulher realmente estava doente, que era verídico o que ela falava, ao olhar para ela eu a vi morta.

Morta dentro de um caixão de defunto.

Lembrei-me de que uma tia minha havia morrido recentemente da mesma doença, aos 48 anos de idade. A imagem da tia morta e a imagem da mulher defunta em minha cabeça misturavam-se a uma projeção do futuro infeliz daquela mulher.

Meus olhos subitamente marejaram.

Mas ali eu não poderia chorar, minha obrigação era agir como profissional. E ainda bem que havia o monitor do computador para eu esconder meu rosto.

Em meio a esse delírio mórbido, lembrei-me de uma passagem do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do maravilhoso Machado de Assis. Na passagem a personagem Brás Cubas relata a condição em que estava sua própria mãe: na fase terminal de um cancro (câncer).

Ipsis Literis:

“Com efeito, não era já o reumatismo que a matava, era um cancro no estômago. A infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício”.

Junto a todos esses pensamentos, também me lembrei de que sou mortal. O fato de ser aquela mulher a estar à beira da morte hoje, e eu estar também perto do aniquilamento, é somente uma questão de tempo.

Acredito que, em verdade, somente me compadeci com o sofrimento da mulher porque este será o meu sofrimento num tempo que certamente virá. Seja por uma doença ou de qualquer outro modo, a bancarrota está garantida.

Ao final ri de mim mesmo e de minhas reflexões ao teclado.

Por um momento o bruto cedeu espaço ao sensível, ao pouco de humano que resta em mim. Espero que este sensível não desapareça por completo, e que às vezes ele apareça para conversarmos e filosofarmos um pouco.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 26/02/2010
Código do texto: T2108119
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