Damião Ramos Cavalcanti
UM HOMEM ALADO
Era um ser estranho, enroscado no quintal de Pelayo e Elisenda. Alado, com penas molhadas e rosto cansado, tremia de frio. Aquele “Senhor muito velho com asas enormes”, se não saíra das entranhas da terra, com certeza, haveria caído do céu. Pelo dizer de Gabriel García Márquez, mesmo tratado “sem a menor devoção”, tinha tudo para ser “anjo de carne e osso”. Ninguém chamou o juiz para definir o inesperado visitante, preferiram antes escutar o vigário do lugarejo. O padre Gonzaga deveria falar Latim, se ele o entendesse, seria anjo. Ou, talvez - quem sabe? -, um arcanjo.
Era menino, em Pilar, quando ouvi do Padre Manuel Gomes as primeiras palavras em Latim. Ficava à espreita, esperando uma palavra igual às da minha casa. Já em Itabaiana, entendi melhor, quando Padre João Gomes da Costa pronunciava com vibração: “Introibo ad altare Dei”. E eu, ajudando a Missa, completava com o que José Silveira me fez decorar. Vaidoso, parecia responder uma pergunta. Padre João se deliciava em falar ou cantar aquele estranho idioma, e o povo acreditava que aquele palavreado continha mensagens irreveláveis. Não sabia eu que um dia viria estudar essa língua; escutar aulas na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, falando ou escrevendo somente em Latim, para prestar exame de Filosofia. E que João Gomes, cinquenta anos depois de vê-lo lendo em voz alta o Breviário, escreveria um livro de Latim e pediria que o prefaciasse.
O livro é animado como o autor. O Professor João dá vida à língua morta; traz expressões corriqueiras da antiga Roma para o nosso quotidiano, do “bom dia” ao “boa noite”; apresenta os seis casos das cinco declinações, distinguindo o masculino e o feminino do neutro; detalha flexões do verbo nas quatro conjugações regulares e na mista; ensina construir orações na “lingua mater” e, por consequência, o puro casticismo e constructos da língua filha. Enfim, faz a gente aprender Latim. Se os curiosos do conto de García Márquez tivessem o livro “Lições de Latim – Gramática Latina” de João Gomes, com certeza não esperariam o vigário daquela recôndita vila para conversar com o velho alado. Eles mesmos decifrariam o mistério caído dos céus.
UM HOMEM ALADO
Era um ser estranho, enroscado no quintal de Pelayo e Elisenda. Alado, com penas molhadas e rosto cansado, tremia de frio. Aquele “Senhor muito velho com asas enormes”, se não saíra das entranhas da terra, com certeza, haveria caído do céu. Pelo dizer de Gabriel García Márquez, mesmo tratado “sem a menor devoção”, tinha tudo para ser “anjo de carne e osso”. Ninguém chamou o juiz para definir o inesperado visitante, preferiram antes escutar o vigário do lugarejo. O padre Gonzaga deveria falar Latim, se ele o entendesse, seria anjo. Ou, talvez - quem sabe? -, um arcanjo.
Era menino, em Pilar, quando ouvi do Padre Manuel Gomes as primeiras palavras em Latim. Ficava à espreita, esperando uma palavra igual às da minha casa. Já em Itabaiana, entendi melhor, quando Padre João Gomes da Costa pronunciava com vibração: “Introibo ad altare Dei”. E eu, ajudando a Missa, completava com o que José Silveira me fez decorar. Vaidoso, parecia responder uma pergunta. Padre João se deliciava em falar ou cantar aquele estranho idioma, e o povo acreditava que aquele palavreado continha mensagens irreveláveis. Não sabia eu que um dia viria estudar essa língua; escutar aulas na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, falando ou escrevendo somente em Latim, para prestar exame de Filosofia. E que João Gomes, cinquenta anos depois de vê-lo lendo em voz alta o Breviário, escreveria um livro de Latim e pediria que o prefaciasse.
O livro é animado como o autor. O Professor João dá vida à língua morta; traz expressões corriqueiras da antiga Roma para o nosso quotidiano, do “bom dia” ao “boa noite”; apresenta os seis casos das cinco declinações, distinguindo o masculino e o feminino do neutro; detalha flexões do verbo nas quatro conjugações regulares e na mista; ensina construir orações na “lingua mater” e, por consequência, o puro casticismo e constructos da língua filha. Enfim, faz a gente aprender Latim. Se os curiosos do conto de García Márquez tivessem o livro “Lições de Latim – Gramática Latina” de João Gomes, com certeza não esperariam o vigário daquela recôndita vila para conversar com o velho alado. Eles mesmos decifrariam o mistério caído dos céus.