BAHIA, MÃE OU MUCAMA? UM ESTUDO SÓCIO HISTÓRICO
“Bahia começa com B / Brasil começa também / Bahia é a mãe do Brasil / Sem querer ofender a ninguém / Baiano é filho da mãe / E o Brasil é um grande neném / Só tem tamanho, ó sinhô / Só tem tamanho, ó sinhá / Foi na Bahia que Cabral desceu / Com a gente do seu navio / Foi na Bahia que aconteceu / A primeira Brasília que se viu / Foi na Bahia que tudo se deu / Não foi em São Paulo e nem foi no Rio / É que Cabral descobriu a Bahia / Mas depois é que veio o Brasil / Se você inda duvida, meu chapa / Ou se é que ainda não viu / Pois então olhe ali no mapa / Olhe a Bahia, olhe o Brasil / Repare bem o formato / Compare bem o perfil / E agora me diga de fato / Se os dois não são um retrato / De uma mamãe e seu “fio” / Só tem tamanho.” (Filho da Mãe, composição de Raimundo Sodré e Marcelo Machado – samba de roda de Santo Amaro da Purificação).
Num gesto de rara inspiração o “cantautor” Raimundo Sodré descreveu o nosso Estado como uma mãe junto ao seu filho que cresceu demasiadamente e se olharmos bem a forma da Bahia assemelha-se muito com a forma do Brasil e está colada justamente no coração do nosso país. Isto porque a Bahia presenciou a chegada dos portugueses. Por conta também da sua localização: “no meio e coração da costa”, como diziam os antigos cronistas. E pelo fato de a Bahia ter sido a primeira capital do país. E também responsável pela consolidação da sua independência. Infelizmente o grande compositor, uma das glórias da Bahia, foi praticamente “sepultado” pela mídia em prol de uma cultura de mau gosto, precursora da alienação popular que temos observado atualmente.
“Toda menina baiana tem um santo / Que Deus dá / Toda menina baiana tem encanto / Que Deus dá / Toda menina baiana tem um jeito / Que Deus dá / Toda menina baiana tem defeito / Também que Deus dá / Que Deus deu / Que Deus dá / Que Deus entendeu de dar a primazia / Pro bem, pro mal primeira mão na Bahia / Primeira missa / Primeiro índio abatido também / Que Deus Deu / Que Deus entendeu de dar toda magia / Pro bem, pro mal / Primeiro chão na Bahia / Primeiro carnaval / Primeiro pelourinho também / Que Deus deu / A, a, a, a, que Deus deu / Ô, ô, ô, que Deus dá/’. (Toda menina baiana, composição de Gilberto Gil).
O tema “Bahia em primeiro lugar” da Bahia Terra Mater do Brasil, volta à baila na composição de Gilberto Gil: tudo que acontece no Brasil primeiramente ocorre na Bahia. De feto, a Bahia é terra de muitas tradições devido ao seu papel na primeira fase da colonização. Catarina Paraguaçu, filha do cacique tupinambá Taparica, e Diogo Álvares Correia – o “Karamuru” (que naufragou nas costas do Rio Vermelho) – formaram a primeira família brasileira documentada; segundo alguns escritores, a mais antiga raiz genealógica do nosso país. Batizada na França, em 1528, adotou o nome cristão de Catherine du Brésil (Catarina do Brasil). Juntamente com os descendentes de Garcia d’Ávila com a índia Francisca Rodrigues (na Bahia) e na sucessão de Jerônimo de Albuquerque com a índia Muíra-Ubi (em Pernambuco), formaram as primeiras famílias do novo regime colonial implantado no Brasil. Dessas uniões maritais surgiu a primeira “estirpe” brasileira, falante do tupinambá que até princípios do século XVIII era a única língua falada nas cidades, estâncias e povoados e por causa disso tendo sido proibida pelo Diretório dos Índios, conjunto de leis compiladas pelo Marquês de Pombal em 1757, obrigando todos os brasileiros a se comunicarem em português e não em tupinambá (abá-nhe’enga).
Apesar de tanta tradição e tantos serviços prestados (talvez por causa disso mesmo), a Bahia é freqüentemente objeto de desdém, mágoa ou preconceito por parte de brasileiros residentes em outros estados. O preconceito contra os baianos vem do tempo em que a Bahia era conhecida como a terra do trabalho e da cultura. A “Cidade da Bahia” como era conhecida Salvador nos tempos de capital do Brasil Colônia foi a maior cidade “européia” do hemisfério Sul e grande entreposto comercial. Posteriormente, foi sendo disseminado um grande preconceito dos nossos irmãos do “sul maravilha” e pessoas de outros estados pela constatação da grande quantidade de negros que aqui habitam e do êxodo de grande quantidade de pessoas que saíam de lá do nordeste para Rio e São Paulo (que muitos chamavam de baianos, pois de Minas para o Norte, tudo é chamado de Bahia), um conceito racista e xenófobo. O baiano conhecido como “preguiçoso” que puxou essa história de preguiça baiana foi Dorival Caymmi (esse é realmente um exemplo de baiano que utilizou a sua tremenda preguiça para generalizar os seus conterrâneos).
Não podemos concordar com a lenda da preguiça do baiano. Isso não nos cabe nem à grande maioria de baianos que conhecemos. A Bahia é uma terra de trabalho e de trabalhadores e isso pode ser constatado até pelas cifras do IBGE, que dizem que o baiano é um dos maiores trabalhadores do país. Dizem que o carioca é preguiçoso – mas com isso também não podemos concordar. São preconceitos contra os nossos conterrâneos, tão brasileiros como nós.
A Bahia perdeu para o Centro Sul seu lugar de locomotiva econômica e política, mas conservou sua autoridade moral. Talvez isto explique os ciúmes dos outros irmãos brasileiros. Isto explica certamente o menosprezo da historiografia para com o nosso Dois de Julho. A “Bahia Mãe” passa a “mucama”, pois seus serviços são tidos como de segunda ordem. O Dois de Julho é a data máxima para a Bahia e talvez a mais importante para a Nação, já que através de muitas lutas, conseguiu-se a separação definitiva do Brasil do domínio de Portugal, em 1823. Mesmo com a declaração de independente, em 1822, quando D. Pedro I com um simples alçar da sua espada apenas gritou “Independência ou morte”, imaginando que naquele dia o nosso país estaria realmente independente num piscar de olhos, o Brasil ainda necessitava se livrar das tropas portuguesas que persistiam em continuar em algumas províncias e dentre elas, a Bahia. No dia Dois de Julho de 1823, as tropas brasileiras entravam na cidade de Salvador, até então ocupada pelo exército português, tomando a cidade de volta e consolidando a vitória.
A identidade daqueles patriotas foi personificada na imagem do caboclo representando o sentimento de natividade de índios, negros, brancos e mulatos que lutaram na “guerra” da Independência, derrotando as tropas portuguesas que naquele Dois de julho abandonaram Salvador. Todos os anos, os baianos saem numa caminhada cívica, na data mais reverenciada do nosso Estado, um verdadeiro marco da Independência do Brasil.
Que tal se o nosso grande presidente Lula organizasse uma grande parada na Esplanada de Brasília, no dia Dois de Julho, como uma justa homenagem ao povo baiano, que de forma sofrida contribuiu duramente para a formação da identidade brasileira?
A Bahia tornou-se periférica mas não perdeu o brio. Colhida, já na segunda metade do século XX, pelo Golpe Militar de 1964, muitos dos seus filhos tombaram na luta pela liberdade.
Em 1964, com o golpe iniciado no dia 1º de abril (a pseudo revolução começou como uma mentira), instaura-se ditadura militar impopular onde a censura e repressão trouxeram vinte anos de medo e indignação no seio do povo, que não poupou a utilização de meios diversos para alcançar um retorno à liberdade. 1968 foi o ano mais cruento da ditadura, quando a repressão atingia o seu auge, movimentos estudantis eram reprimidos nas ruas do centro de Salvador com bombas de gás lacrimogêneo e o emprego da violência policial. A grande maioria dos jovens alimentava um ideal de construção de um país estável, habitável e humano para as gerações futuras. Pensava-se num mundo socialista onde não houvesse desigualdade e todas as ações ocorridas na Bahia ficaram ocultas para o Brasil, por força da proibição do coronelismo que imperava na época à liberdade de imprensa.
Os movimentos políticos ocorridos no Pólo Petroquímico de Camaçari, o segundo Pólo Petroquímico brasileiro, na época o maior “pool” de empresas do hemisfério Sul, que pela primeira vez no mundo paralisaram as atividades de um Pólo Petroquímico, enfrentando resistência violenta do regime reacionário, se constituíram num verdadeiro marco para o movimento operário brasileiro, tendo resultado numa profunda mudança nas relações trabalhistas.
Camaçari era considerado como “zona de segurança nacional”; ativistas e líderes do Pólo Petroquímico de Camaçari, que lá preconizavam movimentos contra a ditadura, foram demitidos pelos seus patrões e perseguidos pelo Estado até a década de 90, pois na Bahia, mesmo depois do término do regime de opressão o fantasma da ditadura ainda interagia contra a população. Não só perderam os seus empregos como amargaram a perseguição perversa das chamadas’ na época, “listas negras” que proibiram por anos que retornassem ao mercado de trabalho. As “cabeças” dessas empresas do Pólo eram os mesmos algozes da ditadura.
E na Bahia, a situação local era agudizada pelo poder num estado que era um “feudo” do carlismo, que se mostrava inclusive mais cruel que o próprio regime militar, e o sindicato da categoria, na época o SINDIQUÍMICA, era como um “porto seguro”, um espaço não só para os trabalhadores da categoria, mas para toda a esquerda da região.
Na década de 80 no Pólo Petroquímico de Camaçari intensificaram-se movimentos que pregavam a resistência dos trabalhadores baianos à ditadura, pela libertação nacional e contra a repressão promovida nas empresas a mando do governo do estado, que, ao mesmo tempo em que reprimia as movimentações, impedia que a imprensa publicasse o que acontecia em Camaçari para conhecimento da população do estado.
Hoje, passados 24 anos, esse protagonistas ainda aguardam o merecido e justo reconhecimento por suas lutas, pelas melhorias das suas situações, tentando sair da exclusão a que foram relegados pelo Estado brasileiro e da perseguição impetrada por pessoas reacionárias de tendência francamente “neoliberais” que infelizmente ainda vemos em grande número que desejam sepultar para sempre a luta daqueles que sacrificaram suas vidas para possibilitarem o país mais humano que temos hoje. Alguém sabe disso no resto do país?
A companheira Ana Montenegro, por exemplo, foi uma verdadeira heroína. A primeira mulher exilada por força do golpe de 1964, por seus trabalhos em defesa das causas sociais, na Bahia. Embora tenha adotado a nossa terra como sua, era cearense. Como acontece muitas vezes tanto com pessoas como com fatos ocorridos em nossa terra, morreu sem que a Comissão de Anistia sequer analisasse o seu processo pelas perseguições políticas que sofreu. As suas ações são quase desconhecidas para o resto do país.
O Estado nunca vai pagar todo o mal causado, todo o prejuízo, todas as humilhações passadas por aqueles que se opuseram ao regime militar. Não fomos simplesmente demitidos. Fomos proscritos e perseguidos pelo Estado Brasileiro. Naqueles anos em que lutávamos em prol das melhorias de condições para todo o povo brasileiro acreditávamos que se fossemos demitidos pelas nossas atitudes políticas, pela nossa força de trabalho logo obteríamos emprego em outros locais. Ledo engano. Passamos para o rol dos excluídos e ficamos assim nesses vinte e quatro anos, apesar de termos sido importantes até para a economia do nosso Estado da Bahia que melhorou substancialmente.
Depois que saímos do Pólo Petroquímico não houve mais conquista alguma. Tudo o que foi conquistado serviu para sustentar a economia do nosso estado e foram passadas inclusive para outras categorias. Profissionais, nutricionistas, profissionais de cozinha, enfermeiras, foram contratados pelas empresas do Pólo Petroquímico, além da criação de uma 5ª. Turma para os trabalhadores de turno, como resultado do esforço daqueles que lutaram por uma melhor condição de vida para todos os companheiros do Pólo.
Tese do X Congresso dos Trabalhadores do Ramo Químico / Petroleiro da Bahia em julho de 2008.