Ignoto
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM http://dacarpe.wordpress.com
Meu olhar o acompanhava ao entrar. Sua imundice adequava-se perfeitamente ao vagão. Parecia desamparado pela vida, ou teria sido ele quem a abandonara? Sua relativa juventude escondia-se atrás dos cabelos desleixados e da barba grande e cheia de nós. A fisionomia era a mais comum, a mais reta e inadvertida possível. Sentou-se no banco da frente, onde paralisou todos os movimentos do corpo; passivo e estático, olhava para um nada qualquer numa daquelas viagens onde a mente se esvai ridiculamente. A mim pareceu ser esta sua principal atividade na vida.
Só despertara atenção dos outros passageiros enquanto estava de pé. Ao sentar-se tornou-se ignoto. Não para mim. Não conseguia tirar-lhe o olho. Enquanto as palavras de minha companhia falavam das futilidades cotidianas das nossas vidas, meus olhos guiavam os pensamentos que iam se desencontrando enquanto os detalhes daquele homem iam-se me revelando. As unhas grandes como a de um violonista clássico, sem o instrumento que lhe permitiria tocar a vida de uma forma menos crua; as lágrimas eternas que não caíam e nem secavam, estavam ali por puro comodismo; os machucados nos pés de um sapato encontrado em um lugar qualquer, talvez num lixo de qualquer esquina, que serviam pra amenizar a dureza daquele chão infinito.
Ao seu lado, sentado, um homem de meia idade lia o jornaleco estampando a cara do “brother” eliminado e a última travessura do artilheiro do Flamengo. Lia a matéria como quem degustava um vinho suave de um boteco de esquina. A marmita do trabalho provavelmente se conservava na sua bolsa de carteiro que jazia encostada em sua coxa, devidamente amarrada em seu braço, para evitar problemas. O balanço do trem, o fedor de 6:30 da manhã, a imundice do vagão, nada parecia causar-lhe tanto impacto quanto a notícia dos 77 milhões de votos no último paredão. A vida hiperbólica estampada no jornal impedia-o de enxergar o seu entorno.
Talvez a vida para ele fosse uma hipérbole: trabalha até a morte, dinheiro nem pra morrer. Uma hipérbole eufemisada por um rosto bonito de um guerreiro que enfretara uma batalha contra um terrível exército de 77 milhões. Ao seu lado talvez um eufemismo; um eufemismo exageradamente insignificante para ser notado.
Um, compenetrado nas interiorices de si mesmo, com os olhos fixados em um nada tentando encontrar as vicissitudes de uma vida sem sentido algum; outro, se convencendo de uma realidade de ninguém com valor tabelado de cinquenta centavos de real. Um ao lado do outro, tão distantes, tão in-mundos. Será que eles se (res)sentem?
Será que eles sabem da exist…
Chegou minha estação. Salto do trem. Já esqueci…
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