Tempos modernos
TEMPOS MODERNOS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 24.02.2010)
Curitiba, PR - Só foi saber depois, pelo registro da câmara de vídeo que vigia o salão de café: bem vestido, bem apessoado, bem enfastiado com essa vida de vendedor e executivo de nível médio, o sujeito entrou no recinto, dirigiu-se ao balcão central a fim de avaliar as ofertas para o "desayuno", deu uma rápida varredura, absolutamente entediada, pelas mesas e pessoas que as ocupavam, maioria "brasileños" inquietos de fala alta e voz estridente, e encaminhou-se para uma das mesas. Casualmente, sua cadeira dava costas, encostadinhas, para o encosto da cadeira de Mirela.
Mirela decidiu passar o Carnaval em Buenos Aires com a mãe e conhecer essa que diziam ser uma das cidades mais elegantes, belas e charmosas da América do Sul. O feriadão e o câmbio favorável, essas coisas, estimularam a aventura. Compraram um pacote de preço bastante acessível, pago em vezes, que incluía o voo fretado e quatro pernoites em hotel da Calle Bartolomé Mitre, bem próximo ao Congreso Nacional argentino, na Avenida de Mayo (Madres de la Plaza de Mayo, essas coisas, ali bem perto): hotel simples, porém honesto, que não faz feio à sua classificação de três estrelas.
Mirela viu no vídeo do hotel o sujeito cumprir o trajeto descrito acima, sentar-se atrás de si sem servir-se de nada que o balcão oferecia, levar o braço para trás como quem ajusta um paletó ou reposiciona uma alça que ameaça cair, pegar pela alça sua (dela) bolsa com pesos, reais, dólares, documentos e cartões de crédito, levá-la para a frente (dele), erguer-se, encobrir a bolsa com uma pasta de couro e, sem pressa, atropelo ou ansiedade, deixar o recinto, o rosto impassível. Sentada à frente de Mirela e, portanto, de frente para o crime, Margot nada viu do que sucedia com a filha.
Os trâmites de polícia e queixa, mais o cancelamento dos cartões, tomaram-lhes toda a manhã. À tarde, em plena Avenida 9 de Julio apinhada de povo, um larápio puxou com violência o cordão de ouro e a alça da bolsa de Margot. Como os objetos e a vítima resistissem com sucesso ao assalto, o homem esmurrou o peito da mulher, prostrando-a ao solo.
Buenos Aires, outrora tranquila, apenas vem confirmar uma incômoda e reiterada impressão de que, lentamente, a humanidade retorna à barbárie e ao egoísmo, movida por decisões caprichosas tomadas por uns poucos nas grandes corporações e nos governos dos países poderosos.
(Amilcar Neves é escritor)