IGUAIS
Eu, no meu trampo, tenho muito tempo pra pensar, são doze horas que faço absolutamente nada, à não ser vigiar a exótica praia da Enseada e as pessoas que passam por ela; as mais estranhas pessoas.
Com tanta gente diferente me lembro, como sou tão igual a todo mundo e como pretendia não ser...
Queria, por exemplo, não comer carne, pois acho dispensável no cardápio humano e muito cristão para com os outros animais, que gozam do mesmo sagrado direito de viver que nós. Ah! Mas não resisto a uma costela no bafo, uma linguiça apimentada e um lombinho de porco no limão.
Queria viver de escrever, isolar-me numa floresta e receber da mãe-natureza e dos cosmos toda inspiração que mesmo Shakeaspeare desejou. Mas preciso ganhar din-din, pagar meu carro, colocar um sonzão e comer todas as minas que eu conseguir.
E também não queria ser galinha e nem garanhão, mas mamãe fez-me com pegada e bonitão, o que posso fazer? Vou eu casar, ter filhos , respeitar minha esposa e trabalhar duro para dá uma boa educação aos meus piolhentos? Esse é um sonho! Mas se solto uma coisa dessa no vestiário, viro chacota da turma do futebol.
Na verdade, somos o que a vida determina, como uma criança na roda gigante, um tubarão com fome, um político de cueca, é respectivamente inevitável, não gritar, não comer, não roubar os cofres públicos. Somente os fortes podem mudar o destino, nadar contra a corrente, dizer que o mundo é redondo. Mas eu, eu sou mais um fraco, igualzinho a todo mundo.
FIM
GUILHERME SODRÉ
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LEGENDA
trampo: trabalho, ofício.
din-din: dinheiro.
sonzão: som de carro que faz muito barulho, que os novos jovens adoram instalar só para exibir-se e chamar atenção dos amigos e mulherada.
pegada: ação de um homem que ao invés de carinho pega a fêmea com força, como era feito nos tempos da caverna. "as mulheres ainda gostam!".
mina: menina ou mulher.
piolhentos: adjetivo carinhoso para as crianças.