28 JOGATINA DESENFREADA

Joga-se até por tédio e mais ainda por prazer, aqui, neste país tropical. Jogo alguém foi considerado sequer um vício. Haja vista o jogo do bicho, os títulos de capitalização, as rifas, bingos e sorteios disto e daquilo, que já galgaram lugar de instituições públicas nacionais*.

Se alguém sonha com o peru, faz também seu prognóstico no galo, isto porque existem galos que se parecem com perus. E vice-versa. Então, aproveita-se para jogar nos dois penosos. E, para botar água na fervura da dúvida, ou fechar a sorte, investe-se toda a poupança do troco na águia, e no pavão, e no avestruz. Aves burguesas estão aí, mas, afinal, bichos de pena, afins dos galináceos.

Veja você, tai o fato: anteontem, por boba implicância com as jogatinas, deixei de jogar e quiçá até pegar no bicho, pois sonhara com dois gatos muito acesos, um deles mais feroz e amuado comigo. Por tabela, poderia ter jogado também no tigre, que tem o jeitão felino dos bichanos. Mas, não. Nem pendi para onde houvesse um tabuleiro de jogatina.

Também, não custa nada ser previdente. Importante, mesmo, no duro, para quem se moldou a fazer a fezinha diária, no bicho, é o sujeito pegar no bicho. Dá prazer, dá? Ainda quando gastou x mais do que a migalha y que faturou, na pule premiada, o fulano de cadeira cativa no jogo do bicho sente-se feliz, prazeroso, muito ancho, já pelo simples fato de ter sido bafejado pela bem-vinda ‘buena dicha’. E, aí, fulano e sicrano insistem, sempre, e persistem, jogando até os bigodes e a cueca.

No princípio dos tempos, pois, rareado e cheio de filantropia, veio o bicho. Saído lá dos idos do Império, dizem. Este nosso um conhecido já montou cartéis, arrumou bordéis e sacou meus anéis. Você não gostou das rimas? Ora, depois é que pulularam as loterias: a federal, as estaduais, etc., e tais. Mobiliaram muita gente, hipotecaram bens, mataram a vergonha de outros. E meu pai vendeu um dos sítios.

Muitos se arruinaram, porém, enfim, um ou outro sortudo fez pé de meia. Não vou enumerar, aqui, os jogos ditos “de azar”: cartas, dados, roletas, as vigílias no bacará. Não cito os esportes, nem os desportos, nem as rinhas de canário. Macacos me mordam, mas brigas de galo e de canário!... Vai-te embora, jaburu, não mexas no meu angu!

Roda, roda, roda... Rodou a moenda dos anos. De repente, 2010, estamos diante de um mar de alçapões para captar a minguada pecúnia popular, em conta-gotas: Baú da Felicidade, Loteca, Loto, Sena, Tele-Sena, Raspadinha, Rapidinha, Cartelão do Baú, Totolec, e mais o diabo-mais-que-o-valha.

Ah, o BBB está na tevê? Ligue para 0800... Ligue, é uma boa. Se o babado saiu no canal Globo, no SBT, na Record, então plim-plim, loguinho o festival da jogatina é um tremendo barato. Anos atrás, a venerável dona de casa, decerto, vendo-se às voltas com a novela vesperal, deve muitas vezes de assim ter-se expressado: – Ui, ia-me esquecendo, hoje, de xuxar. Quereria ela dizer: cair no conto do então Papa-Tudo.

Não é do feitio deste profeta chinfrim vaticinar sobre o apocalipse. Ousaria a constatar, no entanto, e denunciar, de pé e dedo em riste, que o teu, o seu e o meu país, oh compatriota lúcido e sangrado, virou um imenso salão de jogatina nacional, com cerca de oito milhões e quinhentos mil quilômetros de área; área chã e fértil para o arroz, o milho e o feijão. Que a féria de todo esse cassino será a divisão da renda ‘per capita’ da miséria absoluta, estampada em garrafais no rosto de todos nós, o amante da ordem, pacato e pacóvio povo brasileiro.

Fort., 24/02/2010.

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(*) Aqui, só uma amostra da jogatina oficializada e bancada pelo governo brasileiro: Dupla Sena, Loteca, Lotofácil, Lotogol, Lotomania, Quina, Tele-Sena, Timemania.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 24/02/2010
Reeditado em 05/03/2010
Código do texto: T2104969
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