O ente querido do escritor
A escrita começa a ocupar um cantinho do meu cotidiano, são retalhos e atalhos da minha vida que por entre veredas e ciprestes se dão ao conhecimento numa simples folha de papel informatizado, já lá vai o tempo em que uma pena se debruçava numa folha de papel lisa, macia e sincera; hoje, tudo mudou, as plumas desapareceram, as folhas de papel ainda existem, mas apenas como auxilio de uma máquina que eu chamaria de quebra corações ou mastiga palavras. Aqui as palavras são mordidas, trituradas, elas tiveram que se acomodar a uma nova casa, e o escritor? O homem que pela sua bondade se entretém tecendo palavras, juntando peças, escreve como se fosse à única coisa que lhe ensinaram. Por vezes, encontra obstáculos, teimosias de última hora, caprichos incandescentes e peripécias que o levam numa viagem alucinante entre o passado, o presente e o futuro – a história se narra a si própria, as palavras dançam ao som do seu maestro. E o mais gratificante é saber que tudo isto se move de forma harmoniosa e graciosa. É uma sinfonia de palavras debruçadas em notas musicais como se não houvesse fim.
As palavras são queridas, eu as amo - não o posso negar, elas me fortalecem, me dão vida, me enchem de prazer, considero-as da minha família, talvez a irmã que eu nunca tive. E digo isto com certo aperto no coração, pois eu tenho uma irmã de verdade. Com a qual não tenho o mínimo de afinidades, por culpa de ambos, não quero atribuir todas as culpas a ela, seria injusto da minha parte, e, além disso, ela não está presente para se defender. Minha Irmã é tão diferente de mim... Ai, ai...
- Deixa para lá, que tristezas não pagam dividas, um dia ainda poderei me conciliar com ela, embora minha mágoa seja grande, é um espinho espetado no meu coração que me impede de qualquer tentativa de reatamento. Meus pais têm feito de tudo para eu conviver com ela, ainda que tente, acabo quase sempre por não ir muito longe, já as palavras nunca me entristecem, nunca me magoam, eu gosto delas por isso, elas sempre são sinceras comigo. Talvez elas escolham o homem, o escritor, ou então elas apenas se encostam.
A escrita acaba por ser um confronto entre o homem e a fera, e só um grande domador poderá conseguir o que quer das palavras, mas quando o consegue, simplesmente elas se prostam aos seus pés... Elas se entranham nas entranhas do homem, do mágico que consegue entendê-las. E aí, sim, é o momento em que homem e palavras são um único ser. O ser que desiste de uma vida lá fora, onde jovens da sua idade se deleitam em vícios, um pouco ou tanto degradantes, para se dedicar à arte mais difícil de se ter sucesso. É preciso muita coragem e ousadia para ultrapassar esta barreira imaginária que separa o trigo do joio. Dostoievsky dizia que “existe no homem um vazio do tamanho de deus”, talvez esse vazio possa ser preenchido com as palavras. Quem sabe? Ou então, o homem preenche esse vazio com outro vazio - o vazio da imoralidade. É esta tendência regressiva do homem actual que me mete nojo, não apenas o homem, a mulher caminha pela mesma ponte - dois seres lado a lado, completamente cheios de defeitos, que usam as palavras como se elas servissem apenas para se agredirem verbalmente, coitadas das palavras... Que sina a delas.
Mas eu as prezo, como nunca prezei ninguém.
- Elas me pertencem...