Revisitando Antonio Silvino
Marcos Veloso é um sonhador e, no seu caminho sonhoso, surgiu como por encanto outro rapaz carregado de devaneios, meu compadre Jacinto Moreno. Essas duas pessoas idealistas embalam e procuram vender um projeto ambicioso: produzir um filme de curtametragem sobre a vida do famoso cangaceiro Antonio Silvino, especialmente sobre suas andanças por esta região de Itabaiana, Pilar, São José dos Ramos e Mari. Seria um documentário sobre a intimidade do bandido, seu modo de ser, seu estilo. Já estão na batalha fazendo pesquisas nas misturas e contrastes que é a História do Nordeste brasileiro, seus conflitos, suas lutas de classe e os enfrentamentos das oligarquias em meio ao banditismo social.
Se o retrato de Antonio Silvino que estão imaginando vai sair, eu não dou certeza, diante da penosa realidade do realizador de audiovisual, arte trabalhosa e dispendiosa. Saindo o filme, não tenho a convicção de que será um trabalho de qualidade, inovador e com alto grau de excelência, mesmo porque Veloso jamais filmou uma cena sequer, nunca escreveu uma linha de roteiro cinematográfico nem atuou em filmes. Jacinto Moreno faz cinema com paixão que às vezes ofusca a razão. Essa dupla promete, pelo menos, lances emocionantes na busca desesperada de patrocínio para a aventura.
Os atores estão sendo escolhidos. Fui convidado para fazer o papel de um chefe de estação ferroviária, telegrafista da antiga Great Western Railway. Como na vida real fui telegrafista ferroviário, tenho chance de fazer um bom papel, dependendo do cachê oferecido, inicialmente cotado em uma garrafa de “garapa dos anjos”. O grande ator Normando Reis parece que vai ficar mesmo com o papel principal, ele que já está habituado a fazer cangaceiros em peças teatrais, conforme se vê na foto.
Não vejo no projeto nenhuma pretensão em propor uma nova visão do cangaceirismo, muito menos inovar a forma de fazer cinema documentário, de época. É apenas uma ideia que pode vir à luz carregada de originalidade, quando nada, porque a face oculta de Antonio Silvino nunca foi mostrada no cinema; episódios nunca lembrados pela historiografia oficial, dramas que se passam nos recônditos da mente de um homem excepcional; coisas que ficaram na conveniência do silêncio; cenas intimistas que não sei se Jacinto e Marcos terão aptidão suficiente para captar e mostrar de forma técnica e harmônica dentro da subjetividade humana e na forma da linguagem cinematográfica.
O resultado sairá daqui a um ano, ou nunca. Com a sua deliciosa sede de cinema, Jacinto Moreno não é cabra de desanimar fácil. Seu companheiro de aventura, Marcos Veloso, deve ir a reboque do entusiasmo de Jacinto. Veloso é conhecido por desistir fácil de projetos. Perseverança não é seu forte, mas acredito que escarafunchando a vida de Antonio Silvino, o compadre Veloso toma gosto, pega o pique e calça as botinas do cangaço cultural, saindo em busca maluca por caminhos cheios de armadilhas, atrás de miragens que, quanto mais longe estão, mais fascinantes nos parecem.
Visitar o lado humano de uma fera como Antonio Silvino é uma boa ideia. Abaixo, trecho do roteiro que está sendo construído:
ANTONIO SILVINO
Pois é, seu Alfredo, pode ir cortando esse negócio aí e me dê as chaves que eu quero dar voltas nesse lugar Araçá.
APRESENTADOR
Esse Alfredo aí era o Tabelião Alfredo Cordeiro de Barros, casado com Pia de Luna Freire e pai do escritor Eudes Barros. Ele era telegrafista da agência do Telégrafo Nacional.
SEU ALFREDO
Seu Antonio Silvino, não precisa levar a chave, eu prometo que vou obede¬cer ao senhor e não vou telefonar pra ninguém.
ANTONIO SILVINO
Seu Alfredo, na minha profissão eu aprendi a não confiar em homem nenhum. O senhor pode confiar em mim, mas não posso confiar em ninguém. Portanto, me dê essa chave e se arretire para sua casa.
SEU ALFREDO
O senhor é que manda. (SAI)
ANTONIO SILVINO
Biu, vá chamar seu João de Luna Freire, chefe da Estação. Diga a ele que Antonio Silvino tá na vila, e fui informado que ele é um senhor de caráter, cidadão de bem e incapaz de fazer uma cilada. Diga a ele também que eu vim em paz, e leve meu rifle como prova da minha confiança. Entregue a ele.
(ATRIZES 1 E 2 PÕEM A MESA E PRATOS COM COMIDA. ENTRA JOÃO DE LUNA FREIRE)
ANTONIO SILVINO
Não tenha sombroso, menina! Esse aqui é Antonio Silvino, cabra respeitador de donzela. (EXAMINA A COMIDA)
JOÃO DE LUNA FREIRE
Bons dias, capitão Antonio Silvino. Meu nome é João de Luna Freire, seu criado... Vim devolver o seu rifle. Por sinal ele tá descarregado.
ANTONIO SILVINO
(MULHERES SAEM) Bons dias. Vosmecê já comeu isso?
JOÃO DE LUNA FREIRE
Já comi de tudo. O senhor pode ficar descansado.
ANTONIO SILVINO
Então vamos comer logo. Minha gente pode ficar preocupada com a minha demora.
BIU
(SENTANDO-SE) Agora falou bonito. Vou tirar a barriga da miséria!
ANTONIO SILVINO
(ENQUANTO COME) Seu Luna Freire, eu vim fazer algumas compras em Araçá.
LUNA FREIRE
O senhor talvez até fique decepcionado com nosso comércio. É pequeno, não tem muito sortimento...
ANTONIO SILVINO
O que eu quero tem aqui. (PARA CANGACEIRO) O que foi que Zé Preá pediu?
CANGACEIRO
Que o senhor comprasse um currumboque pra fumo com tampa de chifre e dois garajus de rapadura. Sim, e 10 litros de cachaça.
ANTONIO SILVINO
Eu tou precisando também de um chapéu de massa. Daquele Ramenzoni, é fácil?
LUNA FREIRE
Né difícil, não. Na rua principal tem a loja de seu Zé Cristo. Pra o senhor não ter o trabalho, eu posso mandar ele vir aqui com o sortimento de chapéu. O senhor escolhe.
ANTONIO SILVINO
Faça o favor.
LUNA FREIRE
Com sua licença. (SAI)
CANGACEIRO
Capitão, esse povo é de confiança?
ANTONIO SILVINO
Se aperreie não, Biu. Eu conheço gente mofina. Esse é um povo bom. E daqui a gente só sai deixando boa impressão. Nada de beber cachaça e não pagar, molestar filha alheia ou procurar briga. Só atire pra se defender.
CANGACEIRO
Inhô sim. (TEMPO)
LUNA FREIRE
Esse aqui é seu Zé Cristo. (ENTRANDO COM ZÉ CRISTO)
ANTONIO SILVINO
Como vai o senhor, cadê os chapéus?
ZÉ CRISTO
Seu João falou que o senhor queria um chapéu bom e o melhor que eu tenho é esse.
ANTONIO SILVINO
(EXAMINANDO) Esse serve, mas qual é o preço?
ZÉ CRISTO
O preço pra vender é vinte mil réis.
ANTONIO SILVINO
Vinte mil réis? Nem se fosse banhado a ouro.
ZÉ CRISTO
(TOMANDO O CHAPÉU) Apôis dê pra cá que esse é o preço de custo.
LUNA FREIRE
(TENTANDO CONTORNAR A SITUAÇÃO) Não leve em consideração não, Capitão An-tonio Silvino. Seu Zé Cristo é um homem bom, simples, sem maldade. É que ele não tem experiência pra tratar com cavalheiros finos como o senhor. Coisa de matuto.
ANTONIO SILVINO
Mas o chapéu tá caro. O senhor não faz um abatimento?
ZÉ CRISTO
Eu não posso não, seu Capitão. Eu tou vendendo pelo preço da fatura.
CANGACEIRO
Eu sangro ele, Capitão?
ANTONIO SILVINO
Se arretire, Biu. Saia cabra! Seu Zé Cristo, eu não sou homem de aceitar imposição. Mas como eu disse ao cidadão aí que minha visita era de paz, eu vou levar o chapéu. Mas que tá caro, isso tá! (SAI)
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