Tumulto no teatrinho
Colhidos pela insensatez, dois camaradas botaram na cabeça mole a ideia de montar um teatro de bolso numa cidade carente de cultura, mas sem nenhuma estrutura pública ou privada para segurar um empreendimento desse tipo. A cidade é Itabaiana e os dois manés somos eu e Marcos Veloso, que morava na Rua da Merda (Meira de Vasconcelos) e ali alugou uma garagem para ser nosso teatro. Sabendo-se que “merda” no vocabulário dos teatristas significa boa sorte, inaugurar um teatro na Rua da Merda é juntar o Tomé com o Bebé, como se dizia antigamente. E foi sentindo nas ventas o cheiro de merda como um feromônio excitante que inauguramos o Teatro Nautília Mendonça com o espetáculo “Dois perdidos numa noite suja”, de autoria de outro sujeito imprudente, o palhaço Plínio Marcos. A peça, estrelada por Fábio Mozart e Normando Reis, foi um grande insucesso de público e crítica.
Isso já faz mais de 30 anos. Eu lembro que nosso último espetáculo foi realizado numa segunda-feira. A peça de Plínio foi um fracasso, daí resolvemos motivar nosso público arredio com alguma coisa que levasse o selo de um artista famoso. Deu-se que na vizinha cidade de Timbaúba, um grupo amador estava levando “Trupizupe, o raio da celebrina”, sensacional texto regional de Bráulio Tavares. Contratada a trupe, anunciamos a peça com a informação de ter sido o espetáculo que lançou a cantora Elba Ramalho, então no auge da fama.
A História jamais acontece às segundas-feiras, conforme o entendimento do cronista e dramaturgo Marcos Tavares. Só que este dia é véspera da grande feira livre de Itabaiana, quando a cidade recebe muitos visitantes dos lugarejos vizinhos. Foi a data propícia para a apresentação do Trupizupe, anunciado no carro de som e na difusora.
A Rua da Merda cheirava a espetáculo. Uma grande quantidade de seres inconscientes, roceiros que queriam ver Elba Ramalho por um preço camarada. Teatro lotado, iniciada a função, a platéia começou a protestar devido à ausência da cantriz. Marcos Veloso tentou esclarecer o equívoco, que não foi anunciada a apresentação de Elba, mas o tumulto estava formado. Diante da manifestação ruidosa, enérgica e raivosa daqueles rústicos espectadores, Veloso sentiu o suor escorrer pelas costas, seguindo o curso natural do medo. O teatrinho não tinha portas de fundo. Um alçapão para pegar os ratos enganadores da fé popular.
O poeta já disse que “são tantos os perigos naturais dessa vida...” Não sei quanto tempo durou o tumulto. Toda lembrança é intemporal. O que sei é que todas as nossas cadeiras foram quebradas, os panos das bambolinas rasgados, o tablado destruído e refletores espatifados. Voltamos à estaca zero. O irremediável caminho de volta é o mais desconhecido de todos os caminhos. Desgostoso, Marcos Veloso foi embora de Itabaiana. Eu fui transferido para Mari alguns anos depois. Do teatrinho só restaram essas lembranças. “Sonho de uma noite de verão”, ou de uma segunda-feira desventurada.
Pedro Calderón de La Barca, autor espanhol, escreveu uma peça chamada “A vida é sonho”, onde o sentido dramático é que tudo é efêmero e vão, o tempo é fugaz e nada perdura. É a mais pura e cristalina verdade.