Maria Clara estava estranhando a demora da mãe. Quando falou com ela pelo celular ela disse que já estava a caminho de casa e só passaria rapidinho na padaria.
- Rapidinho? – pensou a garota – pela demora ela deve ter comprado a padaria com funcionários e tudo!
- O que você falou? – perguntou o irmão que havia conseguido folga no trabalho, emendando o feriado na faculdade e estava passando uns dias em casa.
Ela nem tinha percebido que estava pensando alto. Disse ao irmão que estava estranhando a demora da mãe.
- Relaxa, logo ela chega. Deve ter encontrado alguma amiga.
Essa caaalma do irmão às vezes era irritante. Tudo bem, ela estava ansiosa porque assim que a mãe chegasse iriam comprar o tênis divino, perfeito, maravilhoso que ela queria tanto.
Tudo bem, também, que ela era um pouco ansiosa e o irmão não era tão calmo.
Nesse momento o interfone tocou e Maria Clara correu para atender. Era “Seu” Geraldo, o porteiro, avisando que sua mãe estava subindo e aconselhando os dois a esperá-la no elevador, pois ela havia levado um tombo na rampa de acesso à portaria do prédio.
Maria Clara e o irmão correram para o elevador no momento em que ele parava no andar. O irmão abriu a porta e Maria Clara viu a mãe um pouco pálida, um braço agarrando sua pasta de trabalho e no outro o que restava de algumas coisas que um dia tinham sido sacolas de padaria.
- Mãe do céu! – exclamou a garota. E os dois quase ao mesmo tempo:
- O que aconteceu? – enquanto examinavam a mãe de alto a baixo, observando o braço machucado, esfolado, passando pelo joelho direito onde a calça estava rasgada.
Ela fungou em resposta e foi saindo do elevador mancando enquanto entregava a pasta a um e o que sobrara das sacolas ao outro. O filho, numa tentativa de apoiá-la para andar segurou no seu braço.
- Uiiiiii – o grito da mãe fez com que retirasse a mão rapidamente. Como a expressão dela não deixasse dúvidas sobre o que aconteceria a quem fizesse mais alguma pergunta os irmãos entreolhando-se e, num entendimento mútuo, foram seguindo a mãe até o apartamento respeitando seu silêncio. Bem, na verdade estavam respeitando seu olhar de “coitado de quem perguntar algo”.
Observaram, ainda em silêncio, ela dirigir-se ao quarto e em seguida ouviram a porta do banheiro sendo trancada e, em seguida o barulho da água do chuveiro.
Correram então para a cozinha e passaram ao exame do conteúdo das sacolas; pão integral que parecia ter sido pisoteado por uma multidão insana. Bom, a garota nunca havia visto uma multidão pisotear um pão, mas imaginava que seria esse o resultado.
Num saquinho onde antes deveria ter biscoitos de polvilho via-se agora uma espécie de farinha; a torta de banana parecia ter sido repartida em pedaços desiguais por um homem das cavernas. O pote de sorvete, sem nenhum dano aparente, foi imediatamente colocado no freezer. Bom, perda total para mousse de maracujá.
Voltaram à sala no momento em que a mãe, de banho tomado, shorts, regata e cabelos molhados exclamando “ais”, “uis” sentava no sofá com a caixa de remédios ao lado.
Lá havia tudo que era necessário quando aconteciam “pequenos acidentes” e a mãe continuava a guardá-la na parte mais alta do armário, como fazia quando eram crianças.
Depois de ajudarem-na com os curativos e conferirem, ainda quietos algumas manchas roxas nos braços, pernas e até no pé, Tiago, ou “Ti” como era chamado arriscou:
- Linda, quer contar como você caiu?
- Lá vem o Ti com a conversinha doce dele! – pensou, desta vez baixo mesmo, Maria Clara. Era incrível! Tudo bem, ele tinha o hábito de chamar a mãe e às vezes ela própria de “Linda”. Mas esse tratamento era usado com muita freqüência quando a coisa estava feia para o lado dele ou numa situação...hã...delicada, como esse tombo da mãe.
A mãe suspirou e olhando para os dois como se fosse cair no choro começou:
- Bem, eu estava com pressa, morrendo de fome e queria chegar logo em casa. O acesso à portaria era mais fácil pela rampa, pois os meninos do “nono” estavam sentados nos degraus da escada.
-Ai, não, os meninos do nono, do nono andar, não! – pensou Maria Clara, alto demais, dessa vez.
O irmão lançou-lhe um olhar como que indagando sobre o amor que ela tinha à vida enquanto a mãe parava de falar e olhava para ela fixamente desafiando: “atreva-se a dizer mais uma palavra.”
- Aimeudeus, furo duplo – pensou, desta vez bem baixinho mesmo, a menina; o irmão não podia ouvi-la sequer falar de garotos – coisa de garoto/irmão/ciumento. E a mãe, bom, a mãe pelo estado em que se encontrava queria que se danassem os meninos do nono que, em situações normais achava muito simpáticos e educados.
- Continua, Linda – incentivou o filho com um olhar de advertência à irmã.
- Eu já estava na metade da rampa quando aquela senhora do 12º, que vive viajando, apareceu com uma mala imensa.
- Lembro que ela sorriu para mim e quando virou para falar algo para o porteiro, esqueceu de segurar a mala, que desceu pela rampa, me atropelou e me jogou em cima da floreira.
- Eu estava com as mãos ocupadas e não deu tempo de amortecer a queda. Quando eu vi, o “seu” Geraldo e os meninos do nono estava lá tentando me levantar.
- Ai, não mãe! Os meninos do nono viram você se estabacar na portaria do prédio??!!! – falou alto a garota, agora sem nem lembrar dos machucados da mãe.
- Maria Clara – falou a mãe com aquela calma assustadora que as mães conseguem manter quando querem esganar alguém.
- Eles não só me ajudaram a levantar como também a recolher as coisas que eu carregava e estavam espalhadas pela entrada do prédio! E foram muito educados, como sempre. E, também, ficaram mais preocupados comigo do que você parece estar agora!
- Foi mal mãe, é claro que eu me preocupo – falou a garota pensando que mãe com esse tipo de chantagem consegue fazer um estrago maior que o exterminador do futuro.
Mas, então, o Tiago tinha que mandar a dele:
- É isso mesmo, Maria Clara, como você pode pensar nisso agora?
E prosseguiu:
- Mas, mãe, diz uma coisa...hum...você caiu de costas para a rua ou para a floreira?
Antes mesmo de ver a reação da mãe a garota pensou:
- Yes! – Agora baixou o garoto/filho/ciumento e sem esperar mandou:
- O que é isso Tiago??!! Nessa situação e você preocupado com quem pode ter olhado para...hã...as costas dela?
- Chegaaa! – agora a mãe gritou – eu quero comer! Vou comer tudo, todas as calorias que tenho e que não tenho direito!
Levantou rápido do sofá e mancando, com “ais”, “uis” pelo caminho foi até a mesa da cozinha.
Os dois, Tiago e Maria Clara, ficaram em silêncio sem coragem de acompanhar a mãe e não querendo estar por perto quando ela visse “tudo” que ia comer.
Silêncio.
De repente ouvem um “ai” acompanhado de uma risada. Em seguida um “ui” já no meio de uma gargalhada e a mãe surge na sala com o pote de sorvete e três colheres nas mãos.
Os dois começaram com uma risada tímida e já soltavam gargalhadas enquanto Tiago corria para salvar o pote de sorvete que quase caía das mãos da mãe.
A mãe ria enquanto fazia caretas de dor.
- Vocês não imaginam a cara do “seu” Geraldo, coitado! E os meninos, então? Dois me ajudando e o outro correndo para pegar a mala que continuava deslizando pela calçada!
Enquanto os três atacavam o pote de sorvete, Tiago ligava para pedir uma pizza.
Maria Clara olhava feliz para o rosto agora sorridente da mãe que vingava-se do tombo tomando sorvete direto do pote!
- Os meninos do nono... Meu tênis! - pensou a garota. Mas, olhando para o estado da mãe decidiu:
- Ah! Abafa... - e partiu animada para o pote de sorvete.
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