O casamento burguês
De há uns tempos para cá os casamentos se tornaram uma futilidade, um espasmo de maneirismos, sempre que me convidam desejava que não o fizessem, mas cismam em me convidar, e como não quero ser um desmancha prazeres - eu respondo - que lá estarei com fato preto e gravata azul, como se fosse um pingüim do Alasca. Os sapatos pretos com bico fino me parecem estranhos, eles querem entrar no pé, mas o pé tenta a todo o custo evitá-los. Pé de chinela não gosta de sapato fino. A prenda para os desgraçados dos noivos ocupará um espaço bem restrito no bolso do meu casaco, que por sinal está cozido «esta é outras das coisas que nunca percebi» - um bolso cozido! Mas por quê?
-Bem, adiante com o andor que se faz tarde, e eu preciso decidir quantos reais eles merecem, lá fundo não merecem nada, mas também ir a um casamento de mãos a abanar não me parece eticamente correto, por isso vou lhes dar dinheiro vivo, não cheques, pois posso me arrepender e vir a cancelá-lo antes do fim do casamento. Dando grana evito andar de casa em casa à procura de um espremedor de citrinos ou uma torradeira de inox. Até que em casa de meu tio estou precisando de uns aparatos desses, quando aqui cheguei o apartamento de meu tio estava tão sem graça que me virei para ele - e disse – Titio seu apartamento está uma lástima, que por sinal combina com a sua forma de ver o mundo. Juntou-se a fome com a vontade de comer.
Meu tio de tão gordo que é se vê grego para arranjar um fato, mas depois de muita procura lá encontra um alfaiate disposto a lhe conceder três desejos. Um, fazer um fato para um tubarão; dois, metê-lo dentro, e terceiro, conseguir fechar a corrente das calças. Tirando isso até que o fato lhe caiu bem, ser gordo tem o seu glamour, agora ser magro é que é meio chato, sinto-me o estica junto do bucha... é o bucha e o estica dos tempos da TV a preto e branco. Isto me leva para casa de meu avô paterno onde eu costumava passar algumas horas vendo desenhos animados numa tela de chocolate, enquanto que ele tentava discernir os sons do rádio, que acabavam sempre em relatos de futebol nas tardes solarengas de inverno. Sua paixão pelo Benfica era tão grande que acabou por contagiar todos os seus netos. Eu próprio sofro por esse clube, o clube do povo.
Ai avô, avô, fazes-me tanta falta. Sempre foste conhecido como o homem que colocava alcunhas a todos os vizinhos, sempre que passava alguém pela tua varanda, rapidamente, lhe arranjavas um sobrenome: a mim chamavas-me de meu “falho, pichilé”. Na aldeia todos tinham um epíteto, quando estava conversando parecia que falava por códigos, só as pessoas próximas sabiam de quem ele estava a falar, eu não percebia patavina do que ele dizia, só mais tarde é que entrei no esquema dele.
- Mas custou...
A TV a preto e branco durou, durou, e ainda está no mesmo local que a deixou... a casa está abandonada, os sinos da igreja em frente continuam a balançar de forma crepita, por vezes, choram, um choro harmonioso de quem chama por seu badalador. Era meu avô que fazia os sinos vibrar sempre que uma missa se aproximava; mais tarde, ele fora substituído por um relógio automático que levou os sinos a entrar num estado de hibernação: envelheceram, tornaram-se seres tristes - nunca mais cantaram. Minha avó tem medo de viver lá, essa é outras das coisas que não quero compreender, ela lá deve saber, mas de minha avó não tenho grandes lembranças, ela era muito sovina e hirsuta. Não me lembro de ela me ter feito um agrado enquanto criança, meu avô pegava em mim e me ensinava a decorar os reis de Portugal, seus cognomes e as dinastias (4). Nunca mais as esqueci. E olha que hoje em dia isso já não se aprende na escola, se sei... Devo a ele.
O engraçado, é que também eu gostava de ver os rostos singelos e belos dos nossos artistas naquela TV, parece que não havia pessoas feias, pelo menos era imperceptível. Lembro-me de ver a Amália desfilar pelo palco do Centro Cultural de Belém com uma saia gigantesca e cantando “ó gente da minha terra” com uma voz única e poderosa, o fado sempre se afigurou como a antítese do meu país (feio de corpo, mas bonito de alma) – o fado diz muito do estado de espírito dos portugueses, nele estão representados a saudade, o amor, a amizade e o carinho pela nação. Portugal foi durante o período Salazarista o país de Amália e Eusébio. E esse rótulo perseguiu gerações.
Ah, o casamento. Já me ia esquecendo dele...
Acontecerá num espaço amplo e fresco, os convidados aparecem de todos os cantos, como se fosse uma inexplicável desenfarnação de campistas, o jardineiro dá os últimos retoques nas flores, a cozinheira olha para os noivos com um ar de descrença - como a querer dizer - mais uns que daqui a dois meses se separam, o Padre perambula pelos terreiros do paço em busca da melhor posição para se lançar na festa. Os pais da noiva estão mais nervosos do que sei lá o quê, os convidados começam a sair dos carros pretos e achatados e vão caminhando para um suicídio coletivo, do qual eu me vejo fora. A música começa a balançar as redes, o público se assenta em cadeiras de alumínio bem desconfortáveis, diga-se de passagem... os sinos tocam 20h, está na hora do show... Venham os intervenientes, que eu quero é comer alguma coisa que estou morrendo de fome, e não me falem em fotos, eu vim ao casamento por consideração a meu tio, e agora que cá estou quero é encher a pança.
A cerimônia tem inicio, os noivos se apresentam para com o padre, o padre dá inicio ao casório. E puff, estão casados... a comida acaba de entrar pela festa adentro, os garçons se movimentam em estilo monocórdico, parece que estão mentalizados de quais os seus passos de dança, a comida peca por escassa, apenas salgadinhos chegam à minha mesa, ainda não me habituei a casamentos de rico; o dos pobres pelo menos tem comida, o dos ricos tem mais teatro do que outra coisa. A música se começa a fazer ouvir no saguão do edifício, ela é estridente, faz-me lembrar uma discoteca errante, onde os sons tecno... se tornam parte de uma fantasia de Carnaval... é bum, bum, bum e mais bum... Por breves momentos o que era um casamento se tornou numa rave party. Faltam apenas dois Drag Queen.
A minha espera pelo prato da noite continuava, já começava a ficar desalentado, estava perdendo a esperança, até que alguém se lembra de nos servir a ceia... pois o jantar ficou em águas de bacalhau. A ceia promete, mas de promessas ando eu farto, espero bem que haja ali algum fio de verdade... Minha barriga já não agüenta mais de salgadinhos e docinhos... Estou cansado. Eu quero comida de encher o papo. Finalmente, chega o tão aguardado petisco: arroz com feijão e carne... Sóoooo!!!
- Onde anda o meu leitãozinho da bairrada e o meu cabrito assado no forno?
Pelos vistos alguém se esqueceu de colocá-los na brasa!
Ah, como eu gosto dos petiscos em Portugal, a culinária portuguesa me enche as medidas, adoro umas batatas assadas no forno com cabrito, minha mãe faz pratos de lamber os beiços. Ela cozinha muito bem, eu é que sou meio áspero para a culinária, desenrasco-me qb, faço uns pratos simples, umas massas com molhos bem condimentados!!! Adoro comida italiana, pizza e pasta são os meus pratos favoritos, aqui no Rio costumo freqüentar com alguma regularidade Lo Spoleto e La Traviata, não, não é nenhuma ópera de Verdi, é uma pizzaria de quatro estações. E como se come bem lá. Pena que o preço seja um pouco salgado. De resto, é uma maravilhosa loucura.
Ups, o casamento – ele continua aí? Alguém o viu?
Por breves milésimos de segundo fugiu-me novamente a atenção para outras coisas, acabo de regressar a essa festa ímpar e dou de caras com o noivo, de imediato o abraço e lhe desejo felicidades, a noiva não a vejo, deve estar a tirar as últimas fotos de solteira, espera aí... mas ela não acabou de se casar? Já está a dançar com outro homem?
- Não acredito, isso é pura crueldade de quem quer fazer querer que este casamento será desnivelado, mas afinal existem casamentos nivelados? Desde quando um casamento entre pessoas de classes diferentes é equilibrado?
Noiva rica, filha de espanhóis, nascida no Rio de Janeiro com sotaque portunhol, se casa com um baiano de famílias remediadas e que vê nesta moça um bom partido. Só espero que ele seja um bom bobo da corte, caso contrário, los nuestros hermanos lhe darão um pontapé no rabo. Tirando isso, ele será feliz! Aparentemente falando.
Que maldade a minha, ainda agora não percebo por que esta minha aversão ao casamento e aos noivos, se me vou casar ou não, ainda não sei - casar talvez, mas não com festa. Será uma coisa pensada no seu tempo, de acordo com alguns caprichos ou loucuras extravagantes da minha pessoa. Há muito tempo que tenho pensado em casar, falta-me arranjar a noiva, sim, uma pessoa que me complemente, não quero alguém que me torne mais obeso de idéias do que eu possa eventualmente ser. Preciso de uma pessoa que me dê luta - não na cama, pois aí sou bem tranqüilo, mas na discussão de conceitos. Meus pais querem a todo o custo me levar pela bondade da igreja católica, eu, apesar de nascer católico «não me deram outra opção» vivo hoje numa maresia de indefinições, para todos os efeitos sou ateu. Sinto-me bem assim.
Casamento na igreja não passa de uma festinha ridícula onde se tenta convencer os noivos de que viverão juntos para sempre... por favor, poupem-me deste espetáculo circense. Já lá vai o tempo em que acreditava em festinha de igreja. Hoje me tornei uma rocha dura de roer. Um ser desprovido de religiosidade e adoração para com qualquer figura paternalista. Se meu avô ouvisse o que acabei de dizer, de certeza que iria cortar relações comigo, ele era sacristão da igreja. Era um bom samaritano.
E os noivos? Viverão felizes para sempre.