A praia do meu horizonte
A tarde vai longa e meu nervosismo se intensifica à medida que me aproximo da praia, parece que a viagem nunca mais termina, as pessoas olham para mim como se eu acabasse de roubar alguém, talvez isso se deva à minha aparência: barba grande, preta e meia grisalha - há 15 dias que minha pele não sente uma lâmina de barbear. Quiçá não goste de me barbear, sinto-me como se acabasse de estar no fio da navalha, além disso, minha pele de tão sensível que é se rejeita a ser tocada. Meu pescoço alto e belo me faz lembrar uma girafa na savana africana, meus braços cumpridos parecem dois remos que a todo o custo me levam para frente contra a corrente. Um senhor de olhar baixo, meio a cambalear meio a espreguiçar o sofrimento me pede uma moedinha.
- Eu olho para ele e sinto-me na tentação de presenteá-lo com dois reais, vejo que seu rosto tem vivido horrores, suas pernas de tão magras parecem palitos e seus braços pendurados dão uma sensação de prelúdio do que acontecerá no dia seguinte. Mesmo assim, eu resisto à tentação e acabo por seguir em frente recusando sua súplica – não posso – que culpa tenho eu por sua miséria?
- Sim, eu sei, devemos ajudar quem precisa, mas no Rio existem milhares de pessoas que pedem. Ainda há poucos minutos atrás uma senhora de cabelos brancos, calça de ganga cortada ao meio e com lágrimas de quem acabara de levar um fora da vida, me suplicou ardentemente, que lhe comprasse alguma coisa para enganar a fome.
- Aí eu não resisti...
Aproximei-me de um botequim, cuja aparência denota uma fraca decoração, ao balcão permaneciam homens tatuados ou caminhoneiros bebendo sua cerveja acompanhada por uma dose de torresmos ou coisa parecida, por detrás do balcão um homem esguio de pele escura e aparência atroz se entretinha enchendo copos para os clientes; fazia isso com uma mestria tal, que só um malabarista seria capaz de tamanha façanha.
A senhora me seguia como um cão que segue seu osso, seu desespero estava estampado em sua cara pálida, isso me fazia contorcer de dores. Sem mais demora pedi um suco e um pedaço de bolo. O cachaceiro ou taberneiro partiu o bolo e encheu o copo de suco de maracujá, daquele da máquina, que só deus sabe como vai lá parar.
– Paguei, e entreguei o lanche para a senhora; rapidamente, balbuciou meia dúzia de palavras, cujo significado não consegui perceber, mas lendo seus lábios ela estava tentando me agradecer pela oferenda. Suas mãos tremiam tamanha era a fome. Virei costas, e olhei para ela de soslaio tentando me despedir daquela criatura a quem a vida não tem sorrido.
- A praia aproxima-se... já a vejo pelo buraco da fechadura, lá longe... a areia se estende por uma imensidão infinita onde formigas se aglomeram como cogumelos, se estendem ao cumprido de queijo para o alto, a fazer lembrar um bom filme de suspense, em que aquelas bundas gordas sobressaem, é cada susto que levo... Mas no meio de tanta baleia, sempre aparece um bom salmão...
Na praia de Copacabana isso é raro, lá vai desaguar toda a favela, isso não me preocupa, gosto de estar rodeado de pessoas pobres, mesmo que saiba o risco que corro. Consola-me ver tanta humildade junta: crianças que choram no ombro das mães, crianças que dormem no colo dos pais, crianças que berram por ir à água, enfim, crianças que não conhecem o sabor da riqueza, e que olham para a praia como se fosse o Cabo da Boa Esperança, de longe o melhor sítio para as gentes pobres.
Depois de apalpar o terreno e avaliar os meus potenciais inimigos, fisgo lá longe um espaço para mim, de preferência ao lado de um casal de idosos, pois parto do principio que estarei mais seguro, embora nada me garanta... e como vou sozinho, com o mínimo indispensável, é sempre bom ter a quem pedir uma atenção redobrada sob as minhas vestes enquanto vou à água. É nestes momentos que eu gostava de ter um homônimo, assim poderia ficar descansado, ele guardava as minhas coisas e eu me banhava no Oceano. Porém, não se pode ter tudo, fico com o simpático casal de idosos... que me fazem recordar meus avós sentados numa cadeira de rede com os pés dentro da água, a chapinhar nela, criando um barulho de sapo.
- A toalha se estende ao cumprido sob a areia, não tanto como eu estaria à espera, acho as toalhas sempre pequenas, ou então sou eu que cresci para lá do normal... tiro a roupa, não toda, como é óbvio – isto não é uma sessão de strip-tease - e começo a lambuzar meu peito de creme protetor, sim... Aquele com cheiro a natas do céu.
– Num ápice, sinto alguém massajar as minhas costas... estranho!
Não me lembro de trazer companhia... hum - pensei para mim próprio – quem será? Talvez alguma alma se tenha auto-oferecido para me untar as costas longas e brancas, que mais se assemelham a um bacalhau defumado. De relance me parecem duas mãos femininas, isso me deixa alerta, estremeço de curiosidade e espanto... tento-me virar, mas não consigo, algo me impede de o fazer! Meu interesse aumenta à medida que o sol vai queimando meus ossos, que minha pele começa a estalar... e que minhas dúvidas aumentam. Sinto uma voz aumentar de volume, não sei se é o rádio do casal de idosos, ou se é a pessoa que se encontra nas minhas costas...
(...)
Afinal é a pessoa que se esconde atrás de mim que decide se expressar, depois de me bater nas costas, tenta agora se apresentar. Eu fico mudo e surdo, não esperava tamanha desilusão, esperava outra pessoa, nunca me passou pela cabeça que era um vendedor de sorvetes que tentava a muito custo me tocar nas costas, para ver se eu acordava, e dessa forma me oferecer a sua especialidade: sorvete derretido com areia é mais gostoso!
- Tinha caído no sono, nada daquilo que senti era verdade, simplesmente um sonho... Onde apenas um vendedor de gelados sobreviveu... e se levantou do anonimato para estragar minha tarde.
Voltando à praia, e do que resta dela, sim, porque resta ainda muita coisa, pelo menos eu acho... e para bem da história seria bom que aparecesse mais algum segundo de inspiração, caso contrário, é oportuno dizer que esta história pode morrer na praia, ou o que sobrou dela, pois todo o mundo quer levar um pedacinho para casa. Uma foto onde uma cara seminua faz pose com o mar lá longe, flocos de areia entranhados no meio dos dedos dos pés, queimaduras do sol nas costas e na ponta do nariz. E até há quem ache que encher garrafas de água salgada pode ter alguma utilidade...
- Desconheço!
- Oh praia, praia... Como eu gosto de ti na hora da despedida...
Pareces-me tão sincera,
Tão calma...
E eu que evito ir até ti mais vezes, pois sempre que vou - deixas-me cansado... exausto.
Mas hoje meu sentimento foi diferente, algo mudou desde que vim pela última vez, talvez a água estivesse mais quente, ou apenas, meu humor que se alterou, meu estado de espírito que se renovou ou minha preguiça que acabou. No meio desta explosão de sentimentos, me dirijo, sorrateiramente, para uma das saídas da praia, vou com sorriso no rosto, toalha nas costas, chinelas nas mãos e muita areia para sacudir... a empregada de meu tio é que não vai gostar disso, acredito mesmo que no seu estilo de mulher durona vai começar a resmungar, e como ela é resmungona! Até parece que ela é a dona de casa e nós os empregados... Por vezes passo-me com ela, não lhe respondo nada, mas fico amuado, e a vontade de explodir é enorme. Contudo, fico-me pelo quase. Um dia destes vou lhe dizer umas verdades, acho que preciso colocá-la no lugar dela para bem da harmonia na casa. Falando assim até parece que eu sou a criatura que toma as decisões da casa, na maior parte das vezes, sim, meu tio jaze cansado, sua eloqüência gripou, daí que minha responsabilidade se tenha tornado abissal. Mas gosto de me sentir útil e ocupado. Dessa forma evito pensar no obscuro.
A praia ficou para trás e eu acabo por cair de pára-quedas em casa. Fecho o pára... e abro a porta de madeira que de tão forte mais parece uma fortificação romana. No sofá se encontra estendido um estranho, que à primeira vista me parece meu tio... sim, é ele. Será eternamente um estranho para mim.