VIVER É PERIGOSO
Há tempos que viver está se tornado uma estranha arte. Viver é a arte de ignorar o absurdo e ir compondo com sangue, suor e poesia essa inexplicável armadilha que se chama vida.
Para se sentir os perigos da vida não é preciso sair de casa. Às vezes, conviver com nossas próprias dúvidas já é uma quase impossível tarefa. O medo percorre todas as nossas veias. Temos medo de quase tudo. Trazemos em nosso dorso o medo de ser atropelados ao cruzarmos a faixa para pedestres. Transformamo-nos em pedestres e, com a graça de um Obelix, atravessamos a rua. Atravessamos a rua da vida a todo momento. Temos medo das inumeráveis doenças. Aids, Câncer, Sífilis. Tuberculose. Pneumonia. Úlcera. Gastrite. Estresse. Etc. etc. etc.
Há um distraído medo que só os noivos sabem sentir. É perigoso ser abandonado no altar. O medo abre a bargilha do noivo e diz: "vá ao banheiro e procure se desintegrar na descarga". Há no coração do noivo o medo de ser abandonado, de não saber, de repente, os passos certos ou as palavras certas. Como se chama a noiva? Maria, Letícia, Cláudia. Esqueceu-se de repente. Viver torna-se perigoso.
E continuamos a romper o carretel da vida. Falta a linha. Falta o espaço para se deslizar a vida e seus derivados. É perigoso saber-se um dia o mais miserável dos seres. Conheço hoje o inevitável risco de me corromper. Há o risco de eu me tornar um vendido. Uma asquerosa e parasita forma de vida.
Sofro com a possibilidade do desemprego. Teria medo também de não viver se soubesse como senti-lo. A medida desigual e sem bônus da ordem das coisas aleija a minha coluna cerebral. Meu coração estranha o beijo sem umidade que o tédio me arranca com força. Meu pulmão sente medo de ser o próximo. Tenho medo de me tornar um homem-bomba. Choro por não poder ao menos ter a escolha de ser um menino-bomba e explodir o jardim hipócrita que meus pés adultos pisaram. Descalços.
A vida está perigosa não só por causa da guerra. Há no meu mundo palpável um feixe de guerra que me corrói. A vida está perigosa não só por causa da pneumonia asiática. Há máscaras descartáveis nos rostos humanos e epidêmicos. O ódio é servido na cesta básica do mundo. A sobremesa dissolve-se antes de eu trazer minha fome à mesa. Estou com fome de paz. Há fome e há revolta no meu modo de sentir. A revolta porém, se alimenta da minha fome. Sem fome de paz, torno-me um inútil milagre da eterna massa. Torno-me livre das algemas do pudor e da moral, um indivíduo comum. Meus braços não carregam mais a bandeira da luta. Sou um produto final. A vida sem defesa, torna-se infinitamente uma arte perigosa.