Sob a corredeira...
A vida é um imenso, caudaloso, e enérgico rio.
Sob a sombra de uma vigorosa árvore é possível observar o fascinante modo como a água desliza pelo seu percurso. O reflexo do Sol se espalhando como finas linhas prateadas brincando ao redor, reluzentes, emprestadas pelas próprias, e incontáveis, curvas que se fundem e se recriam todo instante. É possível imaginar, dali, a água gelada; cristalina. Talvez nem tão gelada. Antecipar em parte todas as sensações que residem naquele caudaloso percurso, e nos espera. É cabível, lícito, projetar o modo como desejamos entrar ali, ou simplesmente podemos seguir a intuição, o coração, à vontade. Pode-se entrar devagar, molhando vagarosamente cada parte do corpo, os joelhos, depois as coxas, a barriga; deixar o arrepio percorrer o corpo, deixando cada parte úmida do corpo antecipar a seguinte sensação próxima. Como quando se ama pela primeira vez, o sentimento que inunda aos poucos. Ou simplesmente pode-se lançar impulsivamente, em pé, de cabeça, como der e vier; e ver no que dá, se dá.
Quando, então, solenemente lançou-se no rio. Como jato, num mergulho fantástico desafiou o ar, o Sol, o vento, a água, por alguns instantes, a gravidade, e então se viu cercado por milhões de situações que não pudera antever, que só percebia agora, dentro do rio. Ali a velocidade era extremamente alta, mais do que imaginava, ou do que revelavam as corredeiras. Intuitivamente percebia que era necessário nadar, e impôs o esforço contínuo aos músculos. Mas somente nadar, uma vida inteira, era muito pouco. Gostava antes de tudo de pensar. Entretanto, seu organismo possuía uma única fonte de energia para canalizar à seus esforços. À medida que canalizava a energia para o exercício da reflexão, do pensamento, sentia mais dificuldade em movimentar os músculos. A água do rio ia se tornando escura, e densa, entretanto, sentia que era aquilo que fazia valer a pena, que emprestava sentido: o pensamento, o raciocínio. Entregou-se ao exercício da reflexão, esqueceu o movimento dos braços. Devido à força do rio, foi sendo jogado à margem. (A velocidade no centro do rio sempre é maior que nas bordas). Como também ia se afundando aos poucos. Sentiu então que teria que continuar se movimentando, nadando, não poderia dar descanso aos seus músculos, e tornou a nadar, ainda com mais vontade, movendo seu corpo com mais vigor. Parou de pensar. Ganhou velocidade. Seguia o fluxo do rio, gelado, sozinho. Sem pensar, só desejando não voltar à margem, nem correr o risco de se afundar. Seguindo a corrente do rio, nadou milhas e mais milhas.
Sentia-se bem, à toda velocidade. Entretanto, não fazia sentido apenas nadar com tamanho vigor, se não podia parar pra pensar a respeito do que estava fazendo. Apesar de água naquele sentido parecer mais leve, entendeu que não passava de uma ilusão da correnteza. Os peixes apenas nadam sem nada refletir, mas ao homem, ou à mulher, não. Devia, então, conciliar seu contínuo movimento de nadar ao de pensar. Sentiu no seu corpo o quanto tornava mais difícil nadar agora, conheceu o frágil limiar da margem e do centro veloz. Sua reflexão nem sempre o motivava, mas não podia negar sua condição humana. Não poderia ser um corpo sem alma que segue em velocidade pra qualquer lugar, era muito mais do que isso. Multiplicava seus esforços. Não poderia fazer mais nada. Já estava no rio.