Uma palavra danada de feia e suas implicações em minha vida.
 
 
Foi escrever que eu não sabia o que era rombuda para que pessoas gentis me esclarecessem: rombuda é uma agulha sem ponta. E, como palavra puxa lembrança, lembrei-me que eu já tive uma agulha rombuda. Quando eu estudava no internato, fazendo o curso ginasial, aprendemos a bordar vagonite, um tipo de bordado de origem européia e que consiste em fazer pontos que lembram alinhavos em tecido próprio. Os pontos passam sobre e sob os fios da trama e linhas coloridas vão formando desenhos geométricos. Esses bordados eram feitos com uma agulha sem ponta ou de ponta rombuda. Que eu me lembre bordei uma única toalha de rosto com linhas coloridas em dégradé, partindo do marrom até chegar ao amarelo pálido. Até pouco tempo atrás essa toalha ainda existia. Lembro-me de ter ficado toda orgulhosa quando terminei a toalha porque eu sempre fui a incapaz da família: incapaz de fazer todo e qualquer trabalho dito manual, ou seja, que me classificasse como uma futura boa dona de casa. Porque trabalho manual eu fazia: Escrevia tanto que até hoje tenho resquícios de calos no Pai de Todos. E nesse desfiar da meada vou lembrando ainda que minha atividade orto/caligráfica era matéria de troca: eu fazia redações ou composições literárias em troca de que fizessem para mim os trabalhos manuais e os desenhos artísticos e geométricos. Era uma boa troca, onde cada qual fazia o que gostava. Com isto estou concluindo que a atividade literária não foi de todo ruim para mim porque rendeu boa pontuação naquelas atividades que eu menosprezava embora nunca tivesse rendido dinheiro.
Por outro lado já rotulada como incapaz de cuidar de uma casa e de suas necessidades e também de realizar outras atividades artísticas de repente esse fato me irritava profundamente e eu decidia provar que todos estavam errados: assim é que sozinha aprendi a fazer crochê e a Bordar ponto de cruz. De outra vez decidi que ia desenhar e usando um velho livro sentei-me a frente de um bloco de papel sem pautas e desenhei tudo o que achei pela frente. Para provar tenho ainda guardado alguns esboços, tais como uma cara de cavalo e um ratinho. Mas as pessoas estavam certas: nada disso era a minha praia. Se eu tivesse que fazer isso de forma continuada teria morrido afogada na areia. Só uma coisa das coisas que me rotularam como incapaz persiste: a arte de cozinhar. Comecei a cozinhar para suprir uma falta – minha mãe avisou que não mais faria o almoço de domingo, ocasião propícia para nossas reuniões familiares. Eu disse: - Eu faço. E desde então, por puro prazer eu cozinho aos domingos e em qualquer outro dia que se fizer necessário, mas faço isso porque gosto. O bom de ser uma pessoa livre reside fundamentalmente nesse fato – fazer só o que se gosta de fazer. E eu me dei esse direito. Por isso digo que minha vida transcorre como uma agulha rombuda passando por entre os fios da trama do tecido. Por que não tem ponta ela desliza suavemente sem ferir ninguém nem a mim. Este é um pensamento que estou tendo agora porque antes nem me lembrava o que significava a tal palavra que deu origem a este texto. E ao usá-la, ela se esgotou de tal forma que vou guardá-la no mais fundo dos bolsos e me esquecer dela por algum tempo porque ô palavrinha danadinha de feia.
Lavras, 18 de fevereiro de 2010