Cinzas, após o carnaval...
Era Carnaval. Resolvemos passar uns dias no campo. No sossego. Ouvir só o sussurrar do riacho, da cachoeira, o coaxar dos sapos, o canto dos pássaros, dos grilos. Sem grilo nenhum.Contemplar o breu da noite bordado de estrelas. A lua tímida, derramando encanto em todos os cantos da mata. Desejo utópico! Onde estiverem dois ou mais reunidos em nome do descanso, em pleno Carnaval, sem moderação na bebida(ninguém ia dirigir, no máximo pilotar o cavalo que estava na baia à disposição dos bichos urbanos) é acreditar demais na união, na partilha, na comunhão de ideias. Cada um tem a sua. Cada um tem seu jeito. Cada um, o seu defeito. Nessas horas, todo respeito é pouco! Quem acredita na tolerância é louco! No grupo havia de tudo um pouco : arquiteto, dentista, poeta, estudante, professora, um tanto heterogêneo portanto! Tudo começou quando a poeta- sonhadora - falou da possibilidade de se comprar a casa alugada na estância. Era uma chácara pequena- mais ou menos 1400 metros- toda gramada, com uma casinha de alvenaria simples: quarto e sala minúsculos, banheiro, área de lazer apertada, teto de gesso embolorado pela infiltração e abandono , com uma churrasqueira,(tudo de que precisávamos, carnívoros compulsivos!), pomar com pés de limão, abacate, maracujá, tangerinas, laranja, cerca viva de uma espécie linda, e uma piscininha para as crianças, onde os marmanjos se fartaram , pois o calor era insuportável. A infra-estrutura do condomínio e o panorama rural eram indescritíveis!: lagos para pesca, reserva florestal de três alqueires para trilhas, plantas frutíferas, riacho, enfim, um paraíso aqui na terra, bem pertinho da cidade. Então, o arquiteto argumentou– cheio de idéias arquitetônicas : -- Se for pra comprar eu “demulo” tudo isto aqui! Ao que o dentista se opôs: -- ah não, que aqui não se de(mula) nada! - Onde já se viu, temos que aproveitar a estrutura já existente! A poeta, com cócegas na língua, levantou-se - em defesa da língua – e disse -- olha aqui, o que vocês demolem é a língua, suas mulas! Vamos aprender a falar primeiro, pra depois discutirmos o assunto, senão fica difícil! Este verbo é defectivo!– Defeca o quê, se contrapõe o dentista? – Defeca a língua portuguesa seu anta, responde gargalhando a poeta! Uma professora de educação física que lá estava, metida à sabe-tudo, entra de repente na conversa : Opa, este verbo não é defectivo coisa nenhuma, é só irregular. – Irregular é o teu conhecimento, brinca a poeta. Cada qual com sua especialidade. Que tal você falar sobre os cuidados para a trilha que faremos depois da discussão? Bem, virou uma verdadeira torre de Babel.... Ficamos os dois dias em harmonia claro, com muita diversão, cervejãoooooo- , - cada qual com sua marca predileta, - pescaria esportiva (os pobres peixes eram pequeninos demais ) mesa farta, guloseimas rurais , com direito à mandioca arrancada na hora - da chácara do vizinho- limonada de limão rosa e água de poço, caipirinha de limão galego apanhado no pé, doce de goiaba , ambrosia, pão de mandioquinha salsa, etc. . A ideia de comprar a propriedade, após o Carnaval e a bebedeira, entretanto, virou cinzas ...
Benvinda Palma