Boa Noite, Cinderela!

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Nossa, que horror! Acabei de acordar numa praça de Cerquilho e me disseram que já é quarta-feira, quarta-feira de cinzas! Estou esfolado, ardido, fedido... Sem dinheiro, sem cartão, sem documentos... Esbagaçado inteiro e nem vi o Carnaval!

O que lembro é de quando foi abordado, em minha casa, sexta-feira... Chegou-se-me, olhou para cima, para baixo, os lados, volteou-se, apalpou-se, esfregou-se, perguntou se eu sabia que durante o carnaval se pode fazer tudo que é proibido; ao que reticenciei e exclamei um ‘ah é?!’

Abriu, mostrou e disse pega, brinca, é tudo teu... Eu disse não, não, acho que não devo... Depois, botou-me na ponta da língua algo como que líquido, viscoso... E eu, bobo, lambi para não desconsiderar. Só lembro que tinha gosto de enxofre, ou alguma coisa perto do acre e mais nada! Apaguei.

Aliás, não que eu não lembre... Eu até lembro, mas não sei se era delírio, sonho ou realidade. Chovia, e no Brasil não chove durante o Carnaval, pois, a natureza não assume o ônus de não corroborar com o vale-tudo nacional...

Também não havia sol... Tudo como fosse madrugada, madrugadinha: nem escuro, nem claro, nem quente, nem frio... O mundo inteiro estático e azul claro! Vento, ventinho leve e de quando em quando movia lento um galho miúdo ou uma folhinha caída...

Alguém me levava e eu sabia este alguém de tudo sabedor e eu nem me preocupasse. Acho que podia ser Maria, podia ser João ou Antonio de Araritaguaba... Só sei que vestia uma indumentária, e, à cintura, um revolver 38, enferrujado, que nem cuspia fogo como que da polícia paulista... Acho também podia ser a mesma pessoa que me botara à boca o mel acre, lá no início, antes do passamento.

E íamos numa estrada crepuscularmente tranquila feito fosse um longo risco num imenso chapadão, e bem à frente um clarão, um clarãozinho suave, libidinoso... E a chuva que não nos molhava, nem ao nosso caminho! E após longa caminhada, logo adiante, perdido na planície imensa, um templo, uma igreja... Só podia ser um lugar sagrado: torres perto do céu, curvas, estátuas, tochas, piras!... Disse ‘nossa, Antonio de Araritaguaba – não tenho certeza se era ele – eu achei que você estivesse imbuído do espírito do Carnaval da Família de Tietê, que apesar da inocência, distribuiu milhares de camisinha...’

Disse-me que o seguisse a uma porta lateral do Templo enorme, colorido, desenhos de deuses e deusas – Príapo, como é conhecido hoje, era um dos mais chamativos - e dezenas de janelas espalhadas pelas paredes sem fim... Colunas grossas e suntuosas, cortinas, couro de cordeiro, bancos, pias, púlpito ricamente ornado e pessoas nuas, nuas em pelo, lotando o Tempo de Deus, ou de um Deus!

Mas não apenas nuas: alucinadamente transavam, todos faziam sexo com todos! Jamais imaginei (apesar de já terem me chamado de ‘Charles Bukowski, o Velho Safado’ e de ‘Nelson Rodrigues da Caatinga’) jamais imaginei tão desenfreada orgia! E ainda dentro de uma Casa de Oração, um Templo Sagrado! Não, eu não imaginaria tamanha devassidão dentro de uma Igreja!

Foi então me disse Antonio de Araritaguaba que não era nada do que eu estava pensando. Aquilo tudo era um ritual inocente e sagrado!

-Sagrado?! Desde quando uma tremenda suruba como está pode ser divina, sagrada?!...

Entredisse-me um ‘Jesus Maria José, fala baixo’ e botou-se a dizer sua versão ao que se me estampava aos olhos lascivos! Era que Mot, o deus da morte, da seca e da miséria, se retirava de sobre a terra, e se ia aos abissais. A chuva sinaliza a proximidade do Reinado de Baal, o deus da fertilidade dos campos, dos rebanhos de gados e aves. Então toda a gente fazia sexo coletivamente para que Baal se anime e faça sexo com sua consorte Axerá. Só assim haveria fartura nos campos, nos rebanhos... E muita prosperidade e riqueza!

- Mas onde já se viu isso?!... Lá no Ceará isto é sacanagem pura!

Disse que ali não era a caatinga e que eu me contivesse, pois, estávamos entre cananeus, no ano 5000 a.C.

Olhei para todos os lados e me perdi entre pernas, braços, bundas, cabeças... Perdi-me inteiramente ante tanta nudez e nem sei o que aconteceu comigo.

Ah, me lasquei na estrada decidido a vir de Cerquilho a Tietê a pé! Estropiado, estropiado e meio...

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