O filminho final

O FILMINHO FINAL

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 17.02.2010)

Ao sair atrás de uma ovelha desgarrada que se viu acuada por dois cães do seu sítio em São Joaquim, João Camargo despencou de uma altura de cinco metros, mergulhando no riacho que passa nos fundos de casa, à ocasião um rio impetuoso de águas turbulentas por causa da chuva que caiu no Planalto. No dia seguinte, Mário, o caseiro, ao procurar a ovelha, que encontrou morta, rasgada pelos caninos afiados dos cachorros, achou um dos pertences mais importantes do Camargo, 70 anos, um homem rural de carreira urbana que retomou as origens das quais nunca, no entanto, chegou a se afastar completamente, posto que pai e sogro sempre foram fazendeiros, o que lhe permitiu manter seus vínculos com o gado bovino, equino e ovino, com o plantio e colheita de maçãs, com o entusiasmo pela uva e pelo vinho, com as tarefas da coleta de pinhões e manutenção de araucárias, um bosque delas do qual não retirava uma árvore sequer apesar do alto valor pago por um tronco quando o seu abate ainda era permitido e executado com voracidade. Mário encontrou os óculos de grau do Camargo dentro do rio, as hastes abraçando uma pedra enquanto o resgate tardava. Já um aparelho de audição ficou perdido no mundo, enquanto o outro, encharcado, manteve-se na orelha, perdido pela ação da água.

João Camargo identificara o rastro da ovelha na fuga em direção à água quando a procurava com o Mário no pasto escorregadio, com a terra enlameada. Ele resvalou pela margem íngreme repleta de pedras, arbustos e galhos até o turbilhão que passava abaixo, provocando luxações e hematomas do lado direito do corpo. Dizem que chegou à água e levantou-se sozinho de imediato.

“Não sei, só lembro que vi as borbulhas do rio como as vi quando era pequeno ao cruzar a cavalo um riacho inundado. Naquela ocasião tonteei mas me mantive montado. Agora, vi as borbulhas e depois só recordo de estar chegando em casa, amparado. Mas sabes qual é o problema? Bem, estudei em colégio de padres. Lá aprendemos que numa situação limite como a que vivi, quando por pouco não me fui, passa na cabeça da gente, muito rápido, um filme de toda a nossa vida. Isso serve para a gente se arrepender dos pecados e, se ainda der tempo, pedir perdão ao Senhor. Pois então: não passou esse filminho pra mim. Por que? Não estava na hora do filme ou ele se tornou inútil por não ter mais arrependimento que me salve?”

(Amilcar Neves é escritor)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 17/02/2010
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