O COISA RUIM
Em tempos de centenário, aqui vai o meu quintanar...
SELVA SELVAGGIA
Mario Quintana
As palavras espiam como animais;
Umas, rajadas, sensuais que nem panteras...
Outras escuras, furtivas raposas...
Mas as mais belas palavras estão pousadas nas frondes mais altas, como pássaros...
O poema está parado em meio da clareira
O poema
Caiu
Na armadilha! Debate-se
E ora subdivide-se e entrechoca-se com esferas de vidro colorido,
Ora é uma fórmula algébrica
Ora, como um sexo, palpita... que importa
Que importa qual seja enfim o seu verdadeiro universo?
Ele em breve será inteiramente devorado pelas palavras!
Do livro "Esconderijos do Tempo"
Editora Globo, Porto Alegre, 1980.
O COISA RUIM
Mulher de Sardas
Existem palavras e palavras, ilustríssimo senhor Mario Quintana. E eu garanto que nem todas são insinuantes e belos animais felinos. Nem todas são espertas e misteriosas raposas. Nem todas, aliás, quase nenhuma, são aves graciosas a sobrevoarem nossas cabeças.
Eu também garanto, prezado Mario Quintana, aqui, do auge da minha experiência, que nem todas as palavras refletem o perfeito caos das cores e das formas de um caleidoscópio. Nem todas as palavras alcançam a embriagante certeza algébrica. E caro Mario, eu sei o quanto é ridículo ruborizar na minha idade e na minha época, mas, aposto um quindim que nem todas as palavras são capazes de pulsar como um sexo em desejo.
Tudo o que sei, mestre, é que existem palavras e palavras. E cabe a mim a dura tarefa de preveni-lo que a maioria delas - sem querer fazer intrigas, é claro - não passa de pequenos demônios sorrateiros, que levam a vida a esconder do homem o que mais lhe é de direito neste mundo: o pensamento.
Ora! O homem pensa pela palavra. Caso essa lhe falte... O que se dá?
Exatamente o que vemos por aí: poetas errando pelo mundo, a vagar pelo árido deserto da falta do que dizer. E por isso eles falam sempre e tanto do amor, da vida e da pátria. Mas cá entre nós, amigo, desses falam muito melhor o beijo, o gozo e o gol.
Pequenos demônios soltos pela selva humana. A humanidade querendo a qualquer custo se explicar, mas e as palavras, onde estão? A humanidade querendo a todo pano se entender, mas e as palavras? O que foi feito das palavras? Ninguém sabe e ninguém viu. Elas se escondem e se divertem com o nosso desespero; elas nos desnorteiam e nos fazem girar feito cataventos em dia de ventania. E às vezes, querido poeta, nós, normais e mortais, até esbarramos nelas, até as sentimos passar rente aos nossos dedos a ponto de causar calafrios e, até, em momentos de súbita e arrebatadora inspiração, as conseguimos capturar! Porém, depois de devidamente agarradas e aprisionadas no branco do papel, quando lhe damos uma forma seja lá de poema, crônica ou romance, quando conseguimos finalmente examiná-las bem de pertinho e então as lemos, relemos, trocamos uma para cá, outra para ali, damos uma ajeitadinha, uma melhoradinha, uma segunda mão de verniz e hum... Não adianta. Elas não passam de filhotes.
As palavras boas mesmo, as gordas que dão bom caldo, as machadianas, as lispectorianas, as guimaranenses... Ah, essas! Essas não se vêem mais por aí, andando de bengalinha pela Rua da Praia, dando sopa como antigamente. Foram todas perdidas nos esconderijos do tempo. Todas guardadas nos espantosos baús dos gênios que não voltam mais. E quem cai na armadilha sou eu, mera aprendiz de feiticeiro, debatendo-me em vãs tentativas de alcançá-las, elas, as palavras todas, o fantástico e demoníaco batalhão das letras, que me encanta e me incita a escrever, escrever e escrever.
Mas o que deve te importar esse amontoado de besteiras que profiro? Marinho, Marinho... Com todo o meu respeito, se as palavras não passam de pequenos demônios, é você o coisa ruim em pessoa, aquele que rege o concerto, que manda e desmanda, que faz e desfaz. Lúcifer, Diabo, Satanás. E quem me dera ter um espelho mágico capaz de refletir em mim tamanha ruindade...