OSSOS DO TEMPO

Abro o álbum de fotografias mais uma vez depois de tanto tempo. Um intervalo que criei entre minhas Escritas e Memórias, nome dado à minha coletânea de memórias e que um dia pretendo publicar. Percebi que todos ainda estão lá (meus entes queridos, meus momentos que poucas vezes registrei). Estão tão distantes desse tempo que vivemos e que eu não decidi que passasse. Ele veio e se foi sem meu consentimento, como se tivesse poder total sobre todas as coisas. Será que o Deus que tanto amamos e acreditamos é o tempo? Um ser invisível, Senhor que passa sem que percebamos? Só Deus tem esse poder, daí a razão desse pensamento de o tempo ser Deus.

Mas ali naquelas folhas estão estampadas as imagens que tantas vezes olhei e hoje são os meus ossos do tempo: sobrinhos, afilhados, meu pai, minha mãe, irmãos, cunhados, sogro (que já não está entre nós), meu marido e sua banda de música... Todos retratados em imagens que jamais cansarei de admirar como se fossem suas próprias presenças. Essa lembrança consistente, de formas marcadas no papel, essa junção de tantas pessoas queridas singulares em suas vidas parece agora se firmar em um passado, sobre um tempo que se foi como se estivesse todos eles destinados à memória.

Minhas memórias. Minhas lembranças. Por que este arrepio ao pensar em memórias? Isso não faz sentido quando ainda os tenho todos junto de mim, entretanto em distâncias necessárias a cada viver. Talvez tenha sentido saudade do tempo mais belo que se foi. Talvez eu não queira admitir esses ciclos necessários. O tempo nos torna exaustos e sensíveis. A sobrevivência... A manutenção do cotidiano... Esses processos pelos quais é necessário passar.

Hoje pensei em meus quarenta e poucos anos quase violentados pelo tempo. Perdi a conta de quantas vezes tivera medo dele ou jogara com ele um jogo incerto. Não venci. Apenas algumas vezes fotografei momentos e rostos para a posteridade. Para as memórias que não se guardam no subconsciente. Essas sombras que não ficam. Imagens e traços. Paisagens que se transformam. Sorrisos. Lembranças do subconsciente são sempre imagens difusas, quase como uma névoa. São apenas para sem sentidas enquanto o próprio sentido as refazem em imagens não muito reais.

Alguma vez enquanto olhava esse mesmo álbum, me vi, de repente, sorrindo de tantos momentos, de tantas transformações. Hoje me lembro novamente deles a divagar e me pergunto: para onde vão os momentos que se viveram e que se desfazem a cada segundo? Não é uma questão para filósofos? Contudo não sou filósofa, embora alguma vez já tenha pensado que temos um pouco de suas loucuras. E ainda duvido de todas suas teorias. Quem poderá dizer se estão certos, se suas lógicas são corretas? Já duvidei de Descartes na sua célebre frase “Penso, logo existo”. Uma planta não pensa e existe. Essa teoria não é meio sem lógica?

Mas que importa isso agora? Estou apenas a olhar retratos e não me ocorrem frases filosóficas. Eu sei que existo e que todos meus entes queridos que estão nesse álbum existem e agora eu os analiso como se analisasse uma planilha que mostra as sucessivas reviravoltas do tempo. Ah! Pudéssemos enganar o tempo! Ou pelo menos não sentir sua passagem. Mas sua passagem está ali exposta naqueles rostos transformados. Alguns já adolescentes. Outros quarentões. Outros para lá dos cinqüenta... Cabelos castanhos que se transformaram em louros pra esconder os brancos... E são memórias. As mais queridas...

Tudo são mistérios de momentos que se diluem e vão para não sei onde. São ossos do tempo. E não se pode com o tempo. Essa seria minha frase filosófica ainda que daqui a muitos anos eu me encontre com o mesmo álbum na mão a sentir saudades. Apenas com uma diferença: os cabelos brancos sem os artifícios das tintas e rugas. Muitas delas a marcar meu semblante de memória E ainda os mesmos questionamentos a cerca do tempo que não pude evitar ou deter.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 04/08/2006
Reeditado em 12/12/2008
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