O RISO QUE NÃO MORREU

Uma gigantesca onda de tristeza cobriu-me no entardecer tranquilo da segunda-feira de carnaval. Eu via o que se descortinava à minha frente mas não conseguia acreditar que não se tratasse de mera visão momentânea dada aos meus olhos por alguma razão desconhecida. Não sabia se chorava rindo ou se ria chorando, porque a cena que me estava sendo proporcionada por esses repentinos e inesperados instantes da existência humana impossíveis de ser previstos poderia conduzir-me tanto para o atalha da melancolia quanto para o rumo da esperança, ali bem na minha frente renovada. Com uma pontinha de amargura mesclada à compreensão do quão é inefável a desilusão que rodeia nosso viver.

Estacionei o carro sem fazer menção de sair, horrorizado, pasmo, meu coração saltando no peito estarrecido. Minha esposa tocou-me a mão e segurou-me o braço, também deveras a um tempo encantada e desiludida ante o que víamos, estática, inerte, caluda. Olhamo-nos prestes a balbuciar algo capaz de definir os sentimentos engalfinhados n'alma, porém a voz não logrou escapar, nem um fio de palavra dissemos. Aquilo à nossa frente existia sim, era de verdade e movimentava-se queimando-nos os olhos, um tanto estranho e inesperado, claro, e ainda assim vivo e firme, contudo exagerando na descontração talvez a querer mostrar-nos ser desnecessária a perplexidade. Não precisava deixar-se envolver tanto por essa emoção arrebatadora, tornar-se surpreso tão de súbito, provavelmente nos diria se tivesse oportunidade para isso.

Descemos do carro sem tirar os olhos dele, ao lado de quem iam os pais e um irmão, e percebemos que nenhum membro dessa família indo também à padaria se preocupava ou demonstrava qualquer reação diferente porque o filho mais novo, cinco ou seis anos deveria ser sua idade, sorridente, brincalhão na ousadia própria da faixa etária e calmo apesar do problema aparente, que não o impedia de rir e falar como se nada estivesse acontecendo, vestindo calça comprida cinza e camisa colorida representando a folia presente, penso, andava apoiado num andajá provido de rodas em razão de não ter a perna esquerda. Sem reclamar nem pedir ajuda, indiferente à falta daquele membro corporal obviamente essencial à normalidade cotidiana, o garotinho aleijado de apenas cinco ou seis anos entrou na padaria dando encontrões no irmão não por causa de sua condição física, mas por galhofa, por farra, por brincadeira. E todos riam na maior descontração. Somente eu e Ana estávamos ainda atônitos com a naturalidade desse cenário incomum, no entanto incapaz de afetar a felicidade do garotinho para quem a falta de uma perna não parecia significar quase nada.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 16/02/2010
Reeditado em 05/08/2010
Código do texto: T2089057
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