Indo trabalhar a Cavalo
Lá estava eu, junto com muitos outros a caminho de meu serviço numa certa manhã dessa semana. O metrô estava parando na plataforma, significando que a “batalha do embarque” estava prestes a começar. Como um guerreiro que aperta as amarras de sua armadura e segura firme seu escudo e espada antes do embate, eu tirei minha mochila das costas e a segurei nas mãos, diante do corpo, ajeitei meus fones de ouvido, preparei-me para os empurrões que receberia de quem estava a trás, e para abrir espaço à força quando as portas se abrissem.
Era a estação Brás, do sentido Leste-Oeste do metrô de São Paulo, e quem é daqui sabe o que isso significa. Para quem não é só posso dizer que fica duas estações antes da Sé, a mais movimentada do metrô dessa cidade, onde ocorre o cruzamento das duas maiores linhas de metrô da cidade.
Quando se abrem as portas nessa estação, Brás, sempre acontece um confronto de gigantes, porque 1/3 da zona leste da capital já está dentro do metrô, e outro 1/3 tenta entrar também – esses eram os que estavam nos trens da CPTM, e que usam a essa estação em que há integração gratuita dos dois sistemas. (O outro 1/3, a essa hora estão nos ônibus ou carros, parados em algum congestionamento por ai)
Como sempre, houve a batalha propriamente dita quando a porta abriu. Antes mesmo do inicio do embarque eu já estava sendo empurrado e prensado contra a porta ainda fechada, e fazia o possível pra manter minha posição ali, como os antigos hoplistas em suas falanges. Era um tumulto que Viking algum acharia defeito. E quando o caminho para dentro do vagão por fim abriu, fui compelido a compartilhar com os que lá dentro estavam toda a gentileza de meus companheiros de plataforma. Um ou dois rapazes mais espertos já tinham achado alguma posição mais segura lá para os lados do corredor, mas a maioria recebeu a onda de choque com tudo. Tipicamente, um tiozinho sem noção (sempre tem um ou dois) tentou ficar perto da porta, se segurando nas barras, e, como era óbvio, o ombro de alguém arrancou a mão dele dali e a correnteza dos que entravam o arrastou lá para a perto da outra porta.
E enquanto isso eu tentava achar alguma posição mais ou menos estável ali pelo meio, enquanto uma baixinha na minha frente se remexia freneticamente e olhava com cara de brava para todos que também se mexiam em busca de um lugar naquele vagão e encostavam inevitavelmente nela.
Acaram por nos prensar, eu e essa baixinha irritada. Grudados mesmo. Nada incomum que algo assim aconteça num vagão hiper lotado. Porém, de vez em quando ela olhava pra mim com uma cara ainda mais irritada e tentava se virar, sair da posição. Evidentemente sem sucesso, claro. Dava para ver o que ela pensava facilmente, e como meu humor nem é ácido, estava só esperando ela abrir a boca para reclamar do “contato físico”, insinuando que eu estava me aproveitando disso, para dizer que se eu fosse usar o metrô para “me aproveitar do contato físico” certamente teria dado um jeito de ficar perto de alguém interessante, e não de uma que tinha cara de rato, como ela (realmente parecia)... Infelizmente ela não fez isso ser necessário.
Logo ao lado, havia outra que resmungava sem parar algo como: “Bando de cavalos estúpidos, empurrando assim quem ta no metrô... por que esses cavalos não esperam o próximo?” Ai eu não me contive e tive que perguntar para ela algo assim: “Você iria sacrificar o seu emprego por causa do meu conforto? Pois bem, nem eu!” Ela me olhou com uma cara de surpresa, mas nem deu para ela fazer alguma réplica porque chegamos na Sé e ai a represa estourou de novo (as portas abriram) e um rio de gente saiu, empurrando e tropeçando uns nos outros, se dirigindo para frente da nova investida da batalha do embarque, que dessa vez levaria o caos para a linha azul do metrô, a maioria rumando para o Paraíso (que costuma ser infernal) e de lá para as estações da Paulista.
Mas depois disso fiquei pensando naquele episódio com a resmungona do metrô, e no fim concluí que ela tinha toda a razão! Na verdade, eu não vou trabalhar de metrô. Ele não é meu meio de transporte. Eu vou trabalhar a cavalo! Eu e muitos outros. Esse é nosso meio de locomoção!
Parece bizarro, mas a lógica da coisa toda é essa, me acompanhem:
Suponhamos que eu precise ir para um lugar distante trinta quilômetros de minha casa, e precise fazer esse caminho em apenas uma hora, no máximo. Existe uma estrada reta que me levará até lá, há um caminho que me levará até onde preciso ir. Mas não posso fazer todo esse caminho apenas com minhas próprias forças, ir a pé. Não daria tempo de chegar, e isso para quem aguentasse a caminhada, já que tem muita gente que não poderia andar 30 km e terminar em condições minimamente boas - independentemente do tempo disponível. Portanto, eu preciso de uma ajuda, de um meio de transporte como um veículo motorizado ou animal de tração, para poder percorrer o caminho a tempo.
É a mesma coisa com o metrô. Ele não é meu meio de transporte, é apenas um caminho, uma estrada. Isso porque o simples fato de ele estar ali, passando sem parar, não significa que vou conseguir utiliza-lo do mesmo modo que haver uma estrada não significa nada se eu não tenho um meio de transporte que me permita percorrê-la a tempo. Se eu tentar embarcar nele como um humano normal, andando, sem empurrar, pressionar, sem ser completamente ignorante, evitando me comportar como um Viking ou um dos 300 de Esparta, jamais vou conseguir utilizar o metrô ou trem! Na verdade até conseguirei... Umas três horas depois do horário de pico, lá pelas dez da manhã quando ele já esvaziou um pouco (apenas um pouco)! E ai não haverá mais sentido em fazê-lo, pois com tamanhos atrasos já terei perdido meu emprego, único motivo pelo qual utilizo esse transporte...
Para conseguir pegar minha estrada, ou seja, o metrô, preciso de outro meio de transporte... E é ai que a mulher resmungona ganhava toda a razão: o meio de transporte são os mesmo cavalos! Eu e os outros usuários precisamos nos converter em animais no mais pleno sentido da palavra, empurrando e puxando uns aos outros, apertando-nos, lutando para manter nossas posições e tudo mais relacionado a isso. Temos que agir mesmo como cavalos selvagens enlouquecidos para conseguir entrar e sair dos trens e assim chegar ao serviço onde podemos voltar a ser gente de novo. Ao menos alguns, claro, já que outros não se contentam com isso e transformam-se em bestas quiméricas nos locais de serviço...
No fim, seríamos um bando de centauros enquanto estamos no trem ou metrô? Conclusão improvável mas que agora me faz muito sentido!
Bem, agora com licença... irei encerrar aqui porque vou pegar um pouco de feno para comer...
Ops, quis dizer um lanche...