ARMAGEDON
Deus, quando criou o ser humano, o fez hermafrodita que geraria outros semelhantes para povoar o mundo que acabara de criar, o verdadeiro paraíso. Mas Deus arrependeu-se desta forma de multiplicação dos seres humanos, achou-a lenta na evolução e geraria descendentes de baixa qualidade. Teve, então, a formidável idéia do casal, macho e fêmea. Ao se cruzarem gerariam um terceiro indivíduo, macho ou fêmea, que herdaria a metade das características de cada um, garantindo assim uma rápida evolução e da mais alta qualidade. E assim se fez...
Deus então criou a mulher, para completar o casal. Não a fez do ouro, porque este não tem amálgama para esculpir-lhe o ventre: a fez de argila. Mas a criatura hermafrodita não a quis. Não queria uma companheira que se intrometesse em sua vida e lhe gerasse descendentes com quem teria que dividir as dádivas do paraíso e a atenção divina. Egocêntrico, reivindicava o paraíso só para si.
Então, do útero da mulher, Deus fez o homem, e logo eles se aceitaram.
E a grande maioria dos seres vivos criados para coabitar o mundo seguiu o mesmo modelo: macho e fêmea.
Porém, a criatura hermafrodita não foi exterminada. Deixou-a Deus, propositalmente, para conviver com o homem e a mulher por tempo infinito e concedeu a todos o livre arbítrio.
A criatura hermafrodita recebeu o nome de Satã, e o homem e a mulher, Adão e Eva respectivamente.
Enquanto Satã vivia solitário, Adão e Eva caminhavam sempre juntos, abraçados, trocando carícias e esbanjando felicidade.
Satã, com inveja, mostrou-se rancoroso e maléfico. Aproximou-se do casal demonstrando superioridade e ofereceu-lhes, sem que lhe pedissem, conselhos que lhe abririam os olhos contra Deus.
_Deus quando me criou, relatou Satã, o fez a sua imagem, cem por cento, tão perfeito quanto Ele. Só então, percebeu a Sua falha: criara alguém para competir com Si próprio. Porém não podia voltar atrás: criou, então, vocês, homem e mulher, para ficar entre mim e Ele. Criou-os seres incompletos, que somente juntos se completam e, assim, prontos para a procriação. Mas as suas crias serão metade de cada um de vós, portanto continuarão sendo metade, e passarão a vida inteira procurando a sua outra metade. Deus os ludibriou, dividiu-os ao meio para controlá-los para sempre. Dando força ao homem, e, à mulher, frágil, a responsabilidade de gerar o filho em seu ventre, determinou assim que ele seria o dominador. Você, mulher, será sempre submissa ao homem; fará tudo o que ele mandar e será usada até que não mais a queira e a abandone, trocando-a por outra. Você, homem, não confiará na mulher, pois se sentindo preterida, ela o trairá.
Satã instilou seu veneno no coração de cada um. O homem e a mulher viam-se agora com outros olhos. Adão olhava Eva com jactância. Eva, que sempre apreciou os músculos de Adão como símbolo de beleza, os olhava agora com receio, temia que ele, consciente da sua força, se impusesse contra ela, submetendo-a.
Satã fez a jogada final, o xeque-mate. Dividindo-os no amor, os faria cúmplices na traição a Deus. Incutiu-lhes que provando do sangue de um animal, teriam os mesmos poderes que ele e Deus.
Adão e Eva, longe de Deus, desobedeceram à Sua ordem de não comer do fruto proibido (carne animal), mataram uma ovelha e fartaram-se de sua carne sangrenta, achando-a saborosa e substanciosa: o pecado original.
Deus, onisciente e onipresente, chamou Adão e Eva a sua presença.
_Homem e mulher, quê fizeram, que se apresentam a Mim de cabeças baixas? Por que escondem os sexos? De que sentem vergonha? Ouviram a voz de Satã, se fazendo ignorantes aos verbos divinos; por isso, perderão o privilégio de falar a Mim diretamente; comunicar-nos-emos, daqui para sempre, através de sinais. Sobreviverão através do trabalho; sentirão fome, frio e sede; serão acometidos de doenças que os farão sofrer de dor e medo. Você, mulher, gerará teu filho através da dor. Viverão até a velhice, cientes da morte, mistério permanente, só revelado após a vida terrena.
Satã afastou-os de Deus como pretendia; agora teria que separá-los um do outro para que não gerem descendentes. E então, velhos, morreriam e deixariam o paraíso... E, assim, seria só ele e Deus.
Mas, a atração sexual entre o macho e a fêmea, Deus a fez muito forte, e Adão e Eva geraram muitos descendentes.
Satã, vendo-se agora frente a uma multidão de seres humanos que cresce desordenadamente, utiliza-se de todos seus recursos para dizimá-los: ódio, ira, desconfiança, inveja, gula, cobiça, egoísmo, avareza. Os humanos, possuídos por estes sentimentos negativos, travam guerras ente si para disputas de coisas materiais. Homem e mulher traem-se, atraídos pelo próximo; a mulher prostitui-se, percebendo o valor da atração sexual que exerce sobre o homem. Guerras, drogas e libertinagem provocam pestes e doenças. Tudo isso com o intuito de exterminar a raça humana e reinar absoluto no paraíso.
Mas, apesar da intervenção satânica, a espécie humana cresce em uma progressão geométrica.
Então, Satã percebe que a proliferação dos seres humanos, que tentou impedir desde o início dos tempos, será justamente a razão do seu extermínio. A produção de alimentos e a quantidade de água potável são limitadas no paraíso; os humanos crescendo desta forma insólita e predatória, em breve ocuparão todos os recantos do paraíso, e faltará alimento, água e espaço para todos: matemática de Malthus. Os seres humanos morrerão de inanição e vitimas de combates pela disputa das condições vitais de sobrevivência, de moléstias, epidemias e pestes; guerras apocalípticas extinguirão nações; bombas nucleares desertificarão a terra e poluirão o ar; os humanos restantes se canibalizarão, até que o último caia por terra e seja comido, naturalmente, pelos vermes: o inferno de Dante.
Mesmo assim, Satã continua a instilar sentimentos negativos na humanidade para que ela permaneça se digladiando e não perceba o fim próximo: o Armageddon.
Passam-se mil anos.
Satã, sem os humanos, morre de ócio e tédio.
O paraíso, sem os humanos, restaura-se; as matas exuberantes vicejam por toda terra; as águas são novamente puras e cristalinas; o ar suave e leve envolve todos os espaços; de cada espécie há pelo menos um casal.
Só não há a espécie humana, nem resquício de que havia existido; suas obras se desintegraram: do pó vieram e para o pó voltaram; fiéis não houve que merecessem a vida eterna.
Estava Deus em dúvida se a recriava. Quando a criou em pouco tempo se multiplicou de uma forma astronômica; adulterou as condições climáticas; manipulou as propriedades físico-químicas e biológicas ao seu bel prazer; extinguiu as demais espécies e por fim se autodestruiu, vítima do próprio cataclismo que causou.
Mais mil anos se passam e está Deus ainda em dúvida se recria a espécie humana ou não.
O paraíso se mantém harmônico e formoso; porém, na visão de Deus falta uma coisa para que ele seja perfeito: a espécie humana. Ele simpatiza com a raça humana: é a mais elaborada das suas criaturas, a mais cognitiva, mas também a única rebelde.
Vê como uma das alternativas para recriá-la - sem causar os problemas que a dizimou - não lhe permitir o livre arbítrio. Mas o ser humano sem o livre arbítrio é o mesmo que as ondas luminosas sem luz; que o magnetismo sem atração; que a gravidade sem força. Seria nivelá-los aos seres irracionais, condicioná-los, e isso, Deus não quer.
Mil vezes mil anos se passam e Deus permanece em dúvida. O paraíso continuava fantástico, harmônico, quase perfeito...
Se você, leitor, fosse Deus, como recriaria a espécie humana?