Atrevida e espaçosa
 
          Ao entrar em casa dei de cara com ela, que absolutamente acomodada e sem a menor cerimônia dava indícios de que já havia vasculhado cada canto, pondo por terra qualquer lenda que proclame que o lar de alguém seja indevassável. O meu, ao menos, não foi! Por cortesia hospitaleira ofereci-lhe uma água ou um café, mas ela recusou dizendo que houvera se servido do quanto quis enquanto aguardava minha chegada.

          Fui eu, então, preparar um café só para mim e ela, abusada que é, foi despudoradamente se instalando em minha cama, presumindo que em breve tempo lá iria ter comigo. Com meus botões eu ruminava que, depois de tantos anos de convivência intermitente, por mais intimidade que tenhamos ela e eu, persiste reticente em mim uma pontinha de repulsa. Mas para ela isso é irrelevante, pois não é daquelas que se perde em jogos de sedução, visto que simplesmente se apossa e consome tudo em mim, quando bem lhe apetece. Meu orgulho ficava ali me instigando a reagir, mas é impossível não render-se quando o oponente é mais forte.


          Diante do inevitável, resolvi tomar um banho e jogar-me sobre os lençóis. Insinuei um sono irresistível e pus-me a tentar cochilar por todo meio, pois queria evitar que o contato se consumasse. Mas ela recostou-se em meu travesseiro e começou a sussurrar-me verdades obscenas e eu, em silêncio, em vão fingi não ouvi-la.


          Enquanto ela se enroscava em mim como um polvo de mil tentáculos, eu só pensava numa forma de pô-la porta afora. Mas bem sei que ela não iria. Aliás, nunca se foi e temo que talvez nunca se vá.


          Afinal, que posso eu fazer se a solidão não é visita, por aqui?  Já é de casa há muito tempo!


                                             .oOo.