Gestalt

A primeira vez que me deitei sob um cortinado de renda, achei incrivelmente macabro. O quarto admirado através de pequenos espaços vazios de um tecido que eu via em filmes de terror. Nessa primeira vez, escutei ventos que antes não uivavam, portas que não batiam e gatos que jamais amavam. O preto tornou-se mais preto, as frestas da janela se tornaram mais brilhantes e a casa toda parecia não ser minha. O cobertor, que antes era armadura contra qualquer assombração, tive que abandonar: o calor me atormentava e me fiz desprotegida. A primeira vez que me deitei sob um cortinado de renda, nunca esquecerei.

A segunda vez que me deitei sob um cortinado de renda, achei deveras romântico. O quarto admirado através de pequenos espaços vazios de um tecido que era descrito no mais lindos contos de amor. Nessa segunda vez, tive sonhos com príncipes incríveis, com florestas impossíveis, com castelos encantados. O tecido vagarosamente era levantado, a perfeição por ele deslizava e eu era despertada com um beijo. O cobertor, antes símbolo do meu pudor, em segundos abandonei: o calor me atormetava e eu me quis desprotegida. A segunda vez que me deitei sob um cortinado de renda, nunca esquecerei.

A terceira vez que me deitei sob um cortinado de renda, percebi o quanto era banal. O quarto admirado através de pequenos espaços vazios de um tecido que me protegia dos mosquitos. Nessa terceira vez, percebi que tudo - além de mim - era imóvel, que as paredes são sempre verdes e que não há ninguém - além de mim - dentro do quarto; escutei o barulho da rua, o zumbido constante da teimosia dos mosquitos e minha solidão, que de tão certa já era minha. O cobertor, que antes me protegia do frio, novamente agarrei: o frio continuava, e o cobertor persistia sobre, entre e sob minhas pernas solitárias (acompanhantes uma da outra, apenas). A terceira vez que me deitei sob um cortinado de renda, infelizmente, nunca esquecerei.

08/06/2009