CONFISSÕES DE UMA BARRIGA

Meu umbigo foi enterrado sob uma roseira. Diziam que dava sorte. A cicatriz marcou meu corpo no mundo. Simbolicamente permaneceu intacto o cordão umbilical que me unia à mãe terra.

Cresci com o desfile das expressões envolvendo a barriga: chorei na barriga da mãe, chorei de barriga cheia, empurrei com a barriga, estive com a barriga no espinhaço... Manifestações que marcaram o amadurecimento, as dores do crescimento, as descobertas, os esquecimentos, os desejos, os desinteresses...

Barriga no mundo... A infância cicatrizou docemente como o umbigo, de repente desfolhou...

A barriga se transformou num centro metafórico de vivências. A realidade me apresentou um ventre fértil, e o sonho rascunhou a imortalidade. O umbigo também ganhou perspectivas... Está preso em quê? Se há cordão de umbigo a umbigo, onde estará o começo do meu se só vejo a cicatriz?

Alinhavadas as expressões, carrego infinitas barrigas e dou à luz a novos barrigatintins. Retratos do nascimento de Barbarella e das constantes gestações de pensamentos e versos. Voltas à lua e retornos à barriga, comecei a parir palavras e a enterrar novos umbigos...

Expressões menos poéticas também emolduraram a trajetória: ter barriga de ema, encher barriga de corvo, levar barriga... Não poderia simplesmente me excluir da plena existência e abandonar os verbos que assombram o ventre continente. Tive de aprendê-los e decifrá-los...

Cheia de coragem, resolvi me aventurar no significado da apoteótica expressão “tirar a barriga da miséria” e fui à roseira do primeiro umbigo. Para meu espanto, o canteiro do solo inaugural dera espaço a um grande complexo industrial. Voltei para casa desnorteada. Como poderia retornar ao centro das representações se já não havia umbigo e roseira?

Viagens ao redor do umbigo. A história oculta pela superficialidade de uma cicatriz. As tradições perdidas na complexidade da evolução da humanidade. Minha individualidade desenterrada para o progresso. O que ganhei com isso? Será que perdi alguma coisa?

Demorei a compreender o significado de tantas interrogações. Minha vida estava liberta da depressão central. Saí da fase de ser o próprio umbigo. Por que não me perceber como um todo, sem ficar tão obcecada com o centro? Eu deveria ser mais, sem deixar de ser o que já havia conquistado. O passado estava armazenado na lembrança, todos os umbigos enterrados em roseiras, algumas cicatrizes ainda marcavam o ventre...

Rompi os cordões com o nunca, dediquei-me ao desfrute e ao gozo. Ancorada em minhas vivências e com a percepção que adquiri do outro, aventurei-me em depressões alheias sem a fome da mocidade. Aprendi com Barbarella a reconhecer e valorizar sempre a essência da vida e, com as expressões menos afortunadas, a não ficar passiva aos verbos autoritários e lutar para transformar algumas construções viciadas...

Incorporei o simbólico: na vida, precisamos ser umbigos, ventre e roseiras.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 30/05/2005
Código do texto: T20791