Sentado

Ela passava, simples. E só o fato de passar já me enchia os olhos e a boca. Um pé, depois o outro; seria assim. Mas quando eram os pés dela o mundo inteiro se mexia, crateras se abriam, vendavais solitários se uniam, a maré subia. Os pássaros cantavam mais alto; de tão alta, a cantoria chegava aos céus e voltava em forma de tempestade. Ela começava então a correr.

Ela corria, simples. De tão simples ritmo meu fôlego se extinguia e eu me via morto durante alguns segundos inspirados por algum deus. Os raios desse deus eram os cabelos negros que balançavam molhados pela chuva. Morri uma, duas, três eternas vezes. E morro constantemente quando ela balança os cabelos. Deus, que não chova mais! Já se foram seis vidas.

Abrigou-se num teto que nem era teto, tão esquisito que se formava. Uma casa que não era casa, pois era um nada perto de tal figura resplandecente. Um castelo não a comportaria, não a honraria. Maldita perfeição, porque existe? Deveria não existir, como dizem livros de filosofia e desiludidos em programas de televisão. Existe para meu tormento, apenas.

E eu fumava, do outro lado da rua, derretendo embaixo de uma goteira que eu não percebia. Todos os sentidos se convergiam nela e o frio não existia. Ela tremia, a roupa grudada no corpo, o cabelo negro – maldito cabelo – respingando cantoria de pássaro. Raio de deus molhado de cantoria de pássaro.

O rosto preocupado, enfadado, tristonho, chateado. Ela não gostava da chuva – ninguém que carrega livros gosta. Olho passeando por todos os lados. Nem me vê, tão insignificante sou. Estende a mão. Lá vêm luz e ruído de ônibus; ela indo embora. O ônibus a esconde, e quando sai deixa um teto que não é teto vazio, tão vazio quanto o meu coração embaixo dessa goteira maldita que eu percebi agora. Queimei o dedo no cigarro. Acendo outro. Tudo sem graça até a próxima tempestade no meio-dia.