loucura

Loucura: um estágio avançado da realidade?

Não se trata de intentar reeditar o livro Elogio da Loucura de Erasmo de Rotterdam (1466 - 1536), que na atualidade não seria mais do que um lugar comum bastante descabido.

Chamamos loucura a essa doença do cérebro que impede um homem de pensar e de agir como os outros. Não podendo gerenciar seus bens, é impedido; não podendo ter idéias de acordo com a sociedade, é excluído; se for nocivo, é enclausurado; se for furioso, trancafiado. É importante observar que esse homem, entretanto, não necessita de idéias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, freqüentemente, enquanto dorme. Pode-se perguntar como sua alma espiritual, imortal, alojada em seu cérebro, recebendo todas as idéias por meio dos sentidos coordenados e divididos, não possa discernir um julgamento são. Ela vê os objetos como os viam a alma de Aristóteles e de Platão, de Locke e de Newton; ouve os mesmos sons, tem o mesmo sentido do tato: por que motivo, pois, recebendo percepções que os mais sábios experimentam e experimentaram, compõe um conjunto inevitavelmente excêntrico?

Se essa substância simples e eterna possui para as suas ações os mesmos instrumentos das almas dos cérebros mais notáveis, deve raciocinar como eles. Que o impediria? Claro que se um maluco vê vermelho e os intelectuais azul; se quando os sábios ouvem uma música o louco ouve o zurrar de um burro; se quando eles estão em oração o louco julga estar numa comédia; se quando eles ouvem sim, ele entende não, então sua alma deve pensar ao contrário das outras. Mas o louco tem as mesmas percepções que eles; não há nenhuma razão aparente pela qual sua alma, tendo recebido mediante os sentidos todos os seus utensílios, não os possa usar. Ela é pura, dizemos; não está sujeita por si própria a nenhuma enfermidade; é provida de todos os recursos necessários; passe o que se passar em seu corpo, nada poderá mudar a sua essência; contudo, encerra-se num hospício.

Essa reflexão pode fazer supor que a faculdade de pensar, doada por Deus ao homem, esteja sujeita a alterações como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro sofre, como o gotoso é um doente que sofre dos pés e das mãos; ele pensa com o cérebro, assim como anda com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incompreensível de andar, nem do seu não menos “enigmático” poder de pensar. Sofre-se a gota no cérebro como nos pés? Enfim, após incontáveis reflexões, é preciso admitir que somente a fé, talvez, possa nos convencer de que uma substância simples e imaterial seja passível de doença.

Os doutores dirão ao louco: “Meu amigo, apesar de ter perdido o senso comum, sua alma é tão espiritual, tão pura, tão imortal como a nossa; porém nossa alma está bem acomodada e a sua está mal; as janelas da casa estão fechadas para ela; falta-lhe ar, ela sufoca”. O maluco, em seus bons momentos, lhes responderia: “Meus amigos, pensem à sua moda, o que é discutível. Minhas janelas estão tão abertas como as suas, porquanto eu vejo os mesmos objetos e ouço as mesmas palavras: é pois necessário que, ou minha alma faz mal uso dos seus sentidos, ou seja, ela própria conota um sentido viciado, uma qualidade depravada. Numa palavra, ou minha alma é louca por sua própria conta ou eu não tenho alma.”

Um dos doutores poderia responder: “Meu irmão, Deus criou, é possível, almas loucas, assim como criou almas sábias. O louco replicaria: “Se eu fosse acreditar no que me diz, seria ainda mais louco do que já sou. Por obséquio, você que sabe tanto, diz-me, por que sou louco ?”

Se os doutores tivessem ainda um pouco de bom senso lhes responderiam: “Ignoro-o absolutamente.” Eles não compreenderão por que um cérebro tem idéias incoerentes; não compreenderão melhor por que outro cérebro tem idéias regulares e coerentes. Julgam-se sábios, e são tão loucos quanto ele.

duende
Enviado por duende em 05/02/2010
Código do texto: T2070863
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