Minha janela quase indiscreta

Aqui está tão quente que até parece o inferno no verão.

Então fui ver se encontrava um pouco de ar menos "caliente" na janela. Nem o rato apareceu esta noite! Mas outras figuraças deram o ar de suas graças.

Primeiro, passou o morador de rua que, reza a lenda local, é filho de um professor universitário. A gente nota mesmo que, apesar do jeito maltratado, ele não se parece com os outros moradores de rua que perambulam por aqui, todos de origem humilde. Tem toda a pinta de quem foi educado, bem alimentado e bem cuidado na infância e adolescência -- o porte físico, a postura, o jeito de andar e aquelas tatuagens já meio desbotadas nos braços e pernas.

Não tenho idéia do que levou este rapaz a escolher morar e viver na rua. A expressão do seu rosto barbado, desgrenhado e sujo é de quem anda em eterno delírio. Mas os seus movimentos são suaves e elegantes. Ao contrário dos outros, que chacoalham as árvores com a brutalidade embotada da miséria pra que as frutas despenquem lá do alto, ele vai escalando o tronco com elasticidade e destreza. E colhe uma a uma as goiabas e mangas, com gestos extremamente delicados. E com a mesma delicadeza, as guarda nos bolsos dos bermudões frouxos, sujos e rotos.

Às vezes apanha um galho pequeno e, usando um velho canivete, faz umas esculturas bastante surreais e estranhas, nos dando uma pequena pista de como funciona a sua mente delirante.

Em seguida, aparece o estudante que mora no outro bloco. O curioso é que ele aparenta ser mais um morador de rua (embora pague um aluguel bem salgadinho), pois anda tão desgrenhado e barbado e molambento quanto os outros. E, pra aumentar ainda mais a semelhança, cata todos os tocos de cigarro que encontra pelas calçadas e canteiros e os enfia nos bolsos. Não sem antes ficar por um bom tempo olhando pra eles, como uma pitonisa estudando as vísceras que lhe darão as dicas pra adivinhação. E como ele parece estar sempre alguns graus acima da sobriedade, é bem possível que esteja mesmo vivendo em outro patamar da consciência.

Mais um pouco e aparecem os outros dois estudantes, típicos representantes da classe média alta -- bem vestidos, postura elegante, muito limpos e vendendo saúde. Só que desta vez um deles estava completamente travestido! Provavelmente estavam indo a algum baile pré-carnavalesco.

Ele estava engraçadíssimo, muito maquiado, usando uma espécie de touca folhuda rosa-choque sobre a peruca semi-longa, castanho escuro e lisa, blusa preta colante de mangas compridas (que realçava um empinado e pontudo par de seios cobertos de lantejoulas e vidrilhos), luvas cor de rosa, muitas bijuterias brilhantes nos braços e no pescoço, um saiote do tipo fru-fru igualmente rosa-choque e meia-calça preta.

Ao se dirigirem pro carro, pude ver os sapatos que a "boneca" estava usando -- botas pretas de cano longo com saltos plataforma altíssimos, também rosa-choque. E carregava um leque chinês escuro numa das mãos, com muita graciosidade. Não resisti e dei uma boa risada. Aí que "ela" caprichou no rebolado e nas abanadas com o leque.

Pra quê TV, se daqui da minha janela quase indiscreta pode-se ter muito mais diversão, informação e instrução? Equivale mais ou menos a um bom curso de antropologia... ou de psiquiatria.