Alegria, Fogoso e Fatos
Ouvindo o foguetório bebeu a cachaça, atrelado ao gargalo;
Por sorte ou azar deixou que o vidro despencasse de sua mão débil, debilitada.
Ouviu-se o estouro oco e surdo do vidro que parte e espalha o liquido contido, feito uma massa aquosa.
Viu espatifar-se em mil pedaços.
Avançou num salto por sobre os cacos;
Sorveu as gotas retidas nos maiores e lambeu os menores.
Um fino fio de sangue, uma raja, misturou-se ao grosso cordão de baba;
Não notou a sialorréia sanguinolenta a molhar as abas da camisa desabotoada.
Subiu a ladeira num pranto desconsolado;
Fazia dó sua lástima!
Mas era algo impossível distinguir qual a maior tragédia naquela vida tão desprovida de graça:
Seria mais comovente o caco de vida, ou os cacos da garrafa?
Os fogos coloriam o céu nas mais diversas cores;
Xingou a todos que o olhavam curiosos.
Seguiu numa marcha ziguezagueada a passos que ora subiam, ora retrocediam ao acaso;
Movia-se sobre uma serpenteante linha imaginária.
Com o dorso do antebraço espalhou as lagrimas por toda a cara;
A baba proferida com as palavras ininteligíveis não lhe incomodava;
Mas os olhos marejados sim;
Estes atrapalhavam a visão turva, disforme e duplicada, triplicada, quadruplicada...
Ao atingir o topo da ladeira não encontrou nada;
Nada que lhe apetecesse a alma,
Nem um reconfortante boteco de portas abertas,
Nem os portais de uma igreja que lhe inspirasse a converter-se de seus caminhos sinuosos.
Não havia maneira para afogar suas mazelas inacabáveis;
Era um ser inconsolável.
O estourar dos fogos lhe transfiguravam a face furiosa.
As lagrimas rolaram novamente,
E com o mesmo vigor da ocasião da fatídica quebra da garrafa.
Escorando as mesmas paredes da ida,
Feito uma lagartixa zonza,
Decidiu voltar ao local do infortúnio;
Desceu esbravejando, jurando vingança ladeira abaixo;
Agarrava-se a um poste, um portão, uma árvore,
Fora tomado por um espírito impiedoso como o de Vlad, o Empalador.
Prometia a não sei quem as mais terríveis atrocidades.
Parou diante dos estilhaços,
Abriu os braços,
E girou em elipse,
Transcreveu no ar o vôo do pássaro mal fadado,
Girou, girou, girou, girou...
Caiu,
Sua têmpora encontrou a quina da sarjeta úmida.
Ouviu-se o estouro oco e surdo como do vidro que parte e espalha o liquido contido, feito uma massa aquosa;
E se seus olhos viram algo concomitante ao choque do impacto,
Viram os estilhaços da garrafa;
E se viram mais algo alguns segundos mais tarde,
Viram seu sangue misturar-se ao que ainda não havia evaporado da cachaça,
E juntamente com o evaporar da cachaça, viu evaporar algum indício de consciência precária que ainda lhe restava;
E se teve um delírio de morte,
Viu os fragmentos da garrafa se encontrar,
E para dentro da garrafa dirigir-se todo o seu sangue,
E transbordar para muito além da estúpida garrafa,
Molhando toda a calçada, a rua, a ladeira acima e o cume da mais alta construção comercial,
Misturando-se ao colorido dos do show pirotécnico.
Sem vida,
Fora encontrado ao despertar do dia 01 de 2010, pelos varredores:
Olhos opacos, vidrados,
Vidrados no vidro estilhaçado submerso na pasta vermelha coagulada.
O gari, num suspiro, compadeceu-se da cena:
Pobre desgraçado que vai solitário a construir sonhos de garrafa.
Pobre solitário!
Exilado de si enquanto sua vida passava.
Privado de ser para agradar ou desagradar; quem sabe?
Mentindo ser feliz na falsa verdade que o cercava.
Fingiu não perceber viver sob o manto da infelicidade.
Sempre insatisfeito a jogar o jogo do ébrio contente com a garrafa.
Pobre desgraçado!
Descanse finalmente em paz,
E que os anjos lhe tomem a alma.