PELO VIDRO FUMÊ DO CONSULTÓRIO
Muitas coisas podem tornar degradante a vida de um homem.
Muitas coisas possuem o potencial de tornar a vida de qualquer pessoa uma experiência isenta de contentamento.
Percebi a mesquinhez da vida ao olhar do consultório do dentista a cidade lá fora em seu passo agitado.
Agitado?
É verdade, há um contra-senso aqui, deverá ter percebido o meu atento leitor.
Como posso dizer que a cidade se move a passo agitado se na rua os carros se moviam a velocidades bem próximas de zero?
Pelo vidro fumê, que atenuava um pouco a visão do caos, a cidade movia-se com pressa, mas ao mesmo tempo quase parada.
Paradoxos de metrópole.
O vidro escuro do consultório do dentista era um refresco para meus olhos cansados de apreciar a insânia.
O que diria Mario de Andrade vivendo em São Paulo nesse janeiro chuvoso de 2010?
O que diria James Joyce? E o Drummond? Qual seria a sua imensa tristeza?
Na rua, vi uma pick-up dessas super-modernas, enorme, preta, com frisos de prata, linda, um sonho de consumo para qualquer um, não vi a marca, nem o modelo, mas pude perceber que qualquer um poderia desejá-la, contudo não seria qualquer um que poderia tê-la, deveria custar muito, muito caro.
Brinquedo de raros adultos privilegiados.
Todavia pensei, atrás do vidro de tonalidade escura do consultório, que servia como um eufemismo àquela tarde de sirenes, buzinas, fumaça e ácido, de que valeria estar num carro daquele se locomovendo mais devagar que num Ford bigode?
No consultório do dentista, ao som de músicas internacionais, e também exposto ao ruído do aterrorizante motorzinho, tive vontade de ir para casa, fechar a porta e nunca mais sair.
Nunca mais receber nenhuma visita também.
Até mesmo se Jesus Cristo batesse à minha porta eu iria dolosamente ignorá-lo.
Ou sairia lá fora para lhe dizer uma série ininterrupta de ofensas e impropérios:
-Como pode, salvador do mundo, como pode essa cidade? Cadê teu pai? O que faz ele da vida?
- Peça para ele passar aqui em São Paulo, para ele tomar o ônibus às 07h00 da manhã, peça para morar na Cidade Tiradentes por uma semana, diga a ele que as chuvas estão já enchendo o nosso saquinho, insista para que ele tome alguma providência além de ter mandado você para aquele ridículo espetáculo da morte na cruz!
Jesus, se tivesse vergonha na cara, sairia quietinho e iria incomodar outra freguesia com seu disangélio, com sua má nova.
Se fosse o calhorda que são todos os poderosos que conhecemos, iria já fazer um pequeno discurso dizendo que todas as providências já estão sendo tomadas e que tudo o que puder ser feito para abrandar a situação será prioridade em sua administração.
E eu continuava a divagar no consultório dentário, feliz por estar de bermuda e chinelo enquanto as pessoas corriam da chuva, atrás do vidro escurecido, que abrandava a voracidade da cidade que só dizia não, peguei uma revista para ler.
A capa trazia um menino haitiano sendo resgatado dos escombros do terremoto que acabou com o já inexistente Haiti.
Abri a revista e fui folhando-a vagarosamente, sem ler, apenas vendo as imagens.
O Haiti, que nunca foi nada, agora era um escombro do nada.
O Haiti que nunca foi uma civilização de fato, agora estava imerso definitivamente na guerra de todos contra todos.
O estado de natureza tomou potência e força impressionante naquela terra em que SOMENTE 85% da população já vivia na miséria.
Veio-me à mente a música do Caetano e do Gil:
“Pense no Haiti, reze pelo Haiti”
Rezar para quê?
O nosso queridíssimo Onipresente esqueceu-se de estar presente no Haiti.
Aliás, ele tem sido o mais inassíduo dos deuses.
Reiteradas faltas ao trabalho sem justificativa plausível.
Tomemos as providências nós!
Vamos demiti-lo já!
O mundo e o Haiti irão nos agradecer.