Botinas & dentaduras

Itamaury Teles (*)

Ganhei o primeiro dia deste ano ouvindo os causos da Laia, uma corjesuense de fina verve, que poucos conhecem como Maria Eulália Lafetá. Isso aconteceu sob a sombra de um caramanchão, que recebe os bafejos generosos da aragem brejeira, lá pras bandas da Vaca Brava, pertinho do meu querido Brejo das Almas.

Para recontar um dos seus causos, preciso fazer breve explicação sobre certos costumes impostos pela pobreza à gente humilde sertaneja, em passado não muito remoto. Eram poucos os que tinham dinheiro para comprar um par de sapatos. Viam-se muitas pessoas descalças, com calcanhares rachados pela inclemência do sol abrasador, que atingia a pele grossa dos pés estropiados por tropicões mil.

Outro fato revelador do nosso pauperismo era a falta de dentes. Os dentistas eram poucos no norte de Minas. Além disso, a maioria exercia a profissão como prático, sem qualquer instrução acadêmica, sabendo apenas extrair dentes. Por isso, os banguelas abundavam na região. Havia até quem vendesse dentaduras – novas e usadas, pasmem! -, saindo com um saco cheio delas pela zona rural. O caboclo ia experimentando, uma a uma e vendo se formava um par, mais ou menos ajustado à sua cavidade oral.

Em Montes Claros, um conhecido comerciante vendia de tudo para as pessoas da zona rural: botinas ringideiras, dentaduras, arreios, grampo de cerca, foices, canivetes etc. Pois foi nessa famosa casa comercial que Totonho, vindo de Coração de Jesus, resolveu equipar-se, para participar de uma procissão religiosa. Ele havia vendido uma junta de bois carreiros e deliberou enfeitar pés descalços e boca murcha com botinas e dentaduras.

O vendedor, muito solícito, mostrou ao Totonho as botinas ringideiras que tanto queria. Experimentando a nova indumentária, Totonho reclamou que elas estavam o apertando nos calcanhares e no dedo mindinho. Como havia poucos pares disponíveis, o vendedor, espertamente, quis garantir a venda:

- Mas ela lasseia logo. Fica igual uma luva depois de amaciada. Se ficar muito tempo sem uso, é só encher de milho com um pouco d’água. No lugar do dedinho, é só fazer uma cruz com o canivete que alivia. Fica uma beleza!

Resolvida a compra da botina, Totonho quis experimentar as dentaduras. Foi-lhe trazido um saco cheio delas. O vendedor olhou o tamanho da sua boca e o que lhe restara de gengiva e, com prática naquele ramo, escolheu para o Totonho um belo par de dentaduras, com incrustações a ouro.

Totonho pôs na boca, mas achou que estavam apertadas. E o vendedor, para empurrar mais aquele produto, arquitetou nova artimanha, com prontidão:

- Isso é igual chifre, “seu” Antônio. Só dói no início. Pode levar que o senhor se acostuma logo, logo. Estas são as dentaduras mais bonitas que nós temos...

Assim, Totonho saiu da loja devidamente apetrechado. Mas andava com dificuldades, embora procurasse dissimular que as botinas comiam-lhe o calcanhar, e as dentaduras torturavam-lhe a boca.

No fim da tarde, depois de carregar o andor na procissão, capengava feito um coxo. Era deplorável seu estado físico. Resolveu, então, voltar pra casa na primeira oportunidade.

No pau-de-arara, não abriu a boca nem para mostrar os dentes novos. Remoia-se de dor, num canto da carroceria. Mas, foi só chegar ao seu destino, tomou uma decisão irrevogável. Foi até o quintal, retirou as botas e as dentaduras torturantes e as jogou no mato, maldizendo o mundo:

- Cês gosta é de cumê, então fica aí cumeno umasanzôta. Meus pé e minha boca, não, suas infuzada...

(*) Jornalista e escritor. Autor dos livros “Urubu de Gravata” e “Noturno para o sertão”. Já no prelo, “Doce Prejuízo”, a ser lançado em março...

Itamaury Teles
Enviado por Itamaury Teles em 01/02/2010
Reeditado em 09/02/2010
Código do texto: T2062339
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