Modismo e a Novilíngua
Retorno ao bar do Zé Careca, de banho tomado, e me encontro com o Juarez, um homem filósofo-emotivo. Explico: é que ele de hora em hora chora de soluçar, devido à sua alta sensibilidade. Ele me conta que chegou ontem à noite em Miracema e encontrou um gato morrendo de fome. Procurou leite por toda a cidade, não conseguindo encontrar em razão do adiantado da hora.Resolveu vigiar o gato por toda a madrugada,mas no início da manhã o felino acabou morrendo Mais uma choradeira... Conseguindo se reestruturar emocionalmente, ele me joga essa pérola: “a vida é toda paradoxal”. Retruquei, toda? – Não, mas quase tudo é paradoxal na vida. Paradoxos do tipo falo melhor, quando emudeço. Você não conhece aquela música do Tom Zé, pernambucano ou baiano, não sei bem, que mora em São Paulo? Tem um pedaço que diz assim: “os paulistas cortêsmente se agridem, se amam, odiando e se odeiam, amando”. Somos todos paradoxais, amigo!
Foi nessa hora que me lembrei do meu amigo criminalista Joel Mercanti, chamado carinhosamente por seus clientes de Dr.Vandinho, o terror dos jovens Promotores que passam por aqui. Penso que a técnica dele no Júri é exatamente atrair o Promotor para cometer um paradoxo e ele então o desmoraliza sem dó nem piedade com a contradição que acaba surgindo por parte do acusador. Contaram-me que em um desses julgamentos, o jovem Promotor, ainda inexperiente da vida, afirmou aos jurados que o tiro que o réu deu na vítima tinha sido à queima-roupa, com a arma apontada em linha reta para o rosto da pessoa assassinada. Foi aí que o Dr. Vandinho, com cara de anjo, escondendo sua proverbial sagacidade, pediu um aparte, prontamente concedido. Começou o nosso criminalista dizendo que o jovem doutor estava cometendo uma tremenda contradição, pois o laudo pericial esclarecia que a bala fora disparada de baixo para cima, o que já fazia cair por terra a argumentação do Promotor. O que houve, na realidade, foi uma legítima defesa, pois a vítima é quem estava com o revólver e o réu lutou com ela para lhe tomar a arma e escapar de uma morte certa. E arrematou: "só se essa arma tinha o cano torto de pegar veado na curva." Mas não ficou só nisso, não! Reproduziu a verdadeira cena do crime e ensaiou uma luta imaginária com a vítima, cambaleando pelo salão, jogou-se ao chão e com seu vozeirão gritou um BUM sonoro, imitando a bala sendo detonada exatamente de baixo para cima. Imediatamente, os jurados se levantaram de suas cadeiras, a Dra. Juíza, uma mocinha nova, segundo as más línguas, subiu em sua mesa, com o susto, enquanto o Promotor pedia água a um Policial Militar, vendo a sua tese fugir-lhe das mãos e que ele havia treinado tão bem nos últimos três meses.
Esta cena teatral foi o bastante para a absolvição do réu, claro, complementada com a parte técnica, que o Dr. Joel esmiúça com maestria. Os jurados cochichavam entre si que se o Dr. Vandinho chegara a esse ponto é porque o fato se dera assim mesmo como ele acabara de demonstrar, além do que estava perfeitamente coerente com o laudo pericial. Final da história: 7x0, pela absolvição.
É por essas e outras que começou o modismo da chamada novilíngua, uma tentativa de controlar o pensamento das pessoas, quem sabe, medito eu, para evitar os paradoxos. Hoje em dia não podemos mais chamar, mesmo com todo o respeito, uma pessoa de preto, temos que chamar, se for brasileiro, de afro-brasileiro. Não podemos mais dizer que fulano é mongol, a não ser que tenha nascido na Mongólia, temos que dizer que o sujeito sofre da síndrome de down. Segundo os “luminares” da novilíngua, ao chamarmos alguém, por exemplo, de deficiente físico, estaríamos ofendendo a pessoa, já que seria contraditória a expressão deficiente físico com o respeito que se deve ter com todas as pessoas.
Nem sei se estou cometendo algum crime “hediondo” ao comentar simploriamente esse assunto, mas sinceramente acho esse controle das nossas palavras inconstitucional, ferindo a nossa liberdade de expressão. Gostaria que esse assunto sério fosse discutido com mais inteligência e não com esse tipo de raciocínio medíocre, onde se confunde alhos com bugalhos. Agora, vou logo avisando, se me processarem, contrato logo o Dr. Vandinho e o procuro de imediato lá no bar do Zé Careca, onde fica a filial do seu escritório.