Nunca contentar-se de contente(EC) - crônica de reminiscências
No quarto do meu irmão mais velho, eu descortinava, a cada exploração não consentida, um mundo muitíssimo fascinante: imagens “desaconselhadas” para menores de idade; pomadas para as acnes que eu ainda não possuía; a liberdade estampada num quadro de carro pendido na parede; lapiseiras com grafites ultrafinos; discos de vinil reluzente; a caneca de porcelana de caveira, símbolo da irreverência adolescente dele...
As apostilas do cursinho pré-vestibular e alguns livros adquiridos em sebos dormiam sobre a escrivaninha à espera dos olhos cansados do meu irmão.Geralmente, eles passavam parte das noites em claro em companhia de Wanderlei, ensinando-lhe fórmulas matemáticas, a inércia dos corpos, os acontecimentos que mudaram o rumo de todas as histórias, inclusive da minha.
Apanhei um dos livros a esmo. Na primeiras folhas, Bete, sua namoradinha, dedicava-lhe um poema, escrito a lápis, com letra miúda:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(Camões)
Embora, do alto dos meus oito ou nove anos de idade, eu não pudesse alcançar a beleza dos versos paradoxais do poeta, compreendi que “nunca contentar-se de contente” significava-me, naquele instante, não abandonar minhas convicções.Explorar cada recôndito do quarto do meu irmão seria, sim, a minha reinação diária, ainda que por ele não autorizada.
Se eu acabara de compreender, por meio daquela leitura rasa, que a Literatura seria eternamente parte de mim, quais outras alegrias uma exploração cotidiana não me reservaria?
(Maria Fernandes Shu- 30 de janeiro de 2009)
Este texto faz parte do Exercício Criativo – “Encontrei num livro antigo”
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