Ver é Vão.

Este que vos escreve é um usuário de óculos. Tenho cinco graus e meio de miopia além de um bocado de astigmatismo. Sendo assim, para meu completo discernimento das coisas ao meu redor é estritamente necessário o uso de óculos. Tenho 25 anos e muitos leigos sabidos, que falam com a propriedade de especialistas, dizem que deveria fazer a operação para de uma vez por todas abandonar o uso do óculos. Outros menos sabidos mas ainda sim leigos, me indicam a troca dos óculos pelas lentes de contato. Refuto ambas as indicações com veemência. Uma por envolver a pratica de operação e vir a ter que conhecer o bisturi é algo que evito com todas as forças, a outra opção é recusada por minha pessoa por envolver um número muito grande de cuidados, e como de preocupações estou cheio, acabo por continuar com meus óculos.

Aqueles que usam seus óculos desde o tempo do pretérito mais que perfeito, ou seja a época de infância, sabem muito bem que o óculos passa a fazer parte de sua identidade estética, que seu rosto, seu corpo e sua mente só estão em comunhão quando sentem o peso das astes no nariz e a cerca das lentes frente a seus olhos.

A um grande problema nisso tudo, e imagino que poucos usuários de óculos tem a coragem de a bandeiras despregadas assumir tao problema. Qual é o grande problema que ataca os usuário de óculos e além disso é vergonhoso ou misterioso para que eles venham a não ter coragem de explanar sobre tal? Perguntará o sagaz leitor. E eu lhes respondo: o grande problema para os usuários de óculos é o ato sexual.

Sim meus caros leitores o ato sexual constitui um grande dilema para os portadores de óculos. Isso porque, voyeristas ou não, todo ser humano tem na visão seu mais forte sentido, diria até que tem na visão o sentido dominante. É claro que muitos vão argumentar que fazer amor envolve muito mais coisas que o simples ato de ver, dirão que tato, contato e até mesmo paladar e olfato são mais importantes que a visão no ato sexual. Outros ainda mais sagazes lembrarão que um grande número de pessoas tem como preferência a escolha de praticar o prazer nas horas noturnas e com as luzes apagadas, talvez no máximo uma meia luz. Mas ainda sim, eu direi a todos, o sentido da visão está lá. Lutando contra a escuridão, fingindo estar em segundo plano mas mesmo assim ele está lá. Aquele no escuro ainda tem a plena certeza de poder enxergar, tem a convicção de que está dominante de suas faculdades sensoriais. Ter o sentido da visão em estado ‘positivo e operante’ é saber-se dono de controle, é sentir-se senhor da situação, ou seja, ver é ter o controle do mundo a sua volta.

O que ocorre então ao que necessitam de óculos? Vamos então listar algumas dificuldades: sendo a primeira delas o fato de que o ato sexual envolve, tanto para homens como para mulheres, uma sorte de movimentos, de idas e vindas que corpo vai corpo vem, acaba de alguma forma afetando o posicionamento do óculos, ou ele fica caído na ponta do nariz, ou ele realmente cai de seu rosto ou esse sobe e desce interminável no nariz acaba fazendo com que o portador dele o expulse da situação. Outro problema é que o sexo é carregado de esfregares de corpos e mais cedo os mais tarde o corpo de um encosta no óculos do outro e como o sexo faz com que o corpo expurgue toda sorte de secreções o suor sempre vem para embaçar as lentes do pobre individuo.

Portanto, por essas e outras condições desfavoráveis e adversas todo aquele ou aquela que por obrigação genética faz das lentes seu modo de ver acaba por abdicar da visão em prol de um maior conforto pessoal.

Mas daí outro dilema começa, você está, dependendo do seu grau de deficiência visual, sem o domínio de sua situação sensorial. Não pode usufruir da parte estética do sexo. No meu caso odeio isso, pois não posso apreciar as nuances do corpo da mulher, não posso desvendar suas pintas, detalhes, cicatrizes e até celulites veladas (sim, mulheres. Há homens como eu que apreciam uma pequena quantidade ainda velada de celulite) além disso, sem os óculos você se sente indefeso, você sente aquela incapacidade de controlar a situação. Por mais intimidade que tivesse com uma mulher. Sempre, inevitavelmente sentia certo desconforto quando estava na cama com ela.

Até que tive uma experiência que marcou-se indelével nos sacramentados tomos de minha vida sexual (que por motivo que desconheço, venho hoje revelar ao mundo). Certa vez conheci uma mulher, da mesma idade que eu. De aparência agradável, raciocínio e dialogo também.

Como toda relação comum homem-mulher fomos aos poucos descortinando as espessas cortinas dos convencionalismos sociais e com certo tempo de “amizade” viemos a deitar na mesma cama.

Tudo começou nos beijos, aquela sensação já me alterava os fluidos do corpo, pois em nossos beijos ao abrir os olhos via refletida nas lentes dela as lentes minhas. Éramos um casal de míopes, míopes desde o pretérito mais que perfeito e trocávamos beijos e abraços na cama. Como já relatado as idas e vindas chacoalharam nossos óculos e num mesmo instante de revolta eu e ela tiramos os óculos e depositamo-os na cabeceira ao lado.

E aquilo foi sublime, havíamos usurpado de nós mesmos o último véu de proteção, ambos estávamos sem mais nada que cobrisse a nossa alma. Despidos de roupa e despidos de um dos sentidos. Não eram nossos corpos que se abraçavam e faziam a velha dança de Adão e Eva. Eram pelo contrário, dois espectros, dois seres imateriais, inefáveis e sem definição. Éramos duas brumas que se misturavam, espectros que se amalgamavam numa experiência onde ver era vão e entregar-se de forma a rasgar todas as formas de defesa era a lei vigente.

Depois disso, pouco a pouco fui voltando a sentir meu corpo. De uma forma ou de outra nossos corpos inefáveis e voláteis se condensavam novamente e piscada após piscada fui por um breve instante ajustando minha defeituosa pupila para enxergar algo que me revelou uma verdade escondida pelos sentidos. Em cima da mesa de cabeceira estavam entrelaçados, nossos dois óculos simbolizando a renuncia a tudo que nos protegia para vivenciarmos um amor de entrega.

Luís Figueiredo janeiro 2010

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 29/01/2010
Código do texto: T2058742
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