ERA DOMINGO...

_ Óiii, o picolé de coalhada! Óiii, o picolé de banana! Quem vai querê...?

Entre a pequena aglomeração em volta da lagoa, Neco segue com seu carrinho de refrescos. A tarde de calor sufocante ajuda a vender. E depois é domingo. Parece que o povo todo do lugarejo e arredores resolveu ir se refrescar...

O menino tem um ar de contente. Antes do meio-dia, aquela já é a terceira remessa de picolés que, de tempos em tempos, vai pegar na sorveteria de seu Tião. A parte que lhe cabe nas vendas vai ajudar em casa, que depois da morte do pai, num acidente na pedreira, a vida não está mole...

Sob o sol escaldante, as águas da lagoa reluzem num lusco-fusco prata-anil. A superfície lisa e calma convida ao banho. A meninada se esbalda debaixo dos olhares atentos dos pais que vigiam, debaixo dos guarda-sóis, ou à sombra dos flamboyants que incendeiam a orla com seus coloridos flamejantes.

A lagoa encanta pela beleza, mas assusta pelo perigo traiçoeiro de águas bruscamente profundas. Quem não lhe conhece as manhas corre o risco de ser surpreendido pelos seus fundos movediços de areia... Muitos desavisados, dali não voltaram para contar os mistérios que ela abriga...

Os moradores do lugar, não se descuidam. Enchem os ouvidos dos filhos com alertas incansavelmente gritados pelo vento:

_ Cuidado Anselmo! É só no raso!

_ Olha lá, Paulinha ! Tô de olho!

Entre as comadres, num ajuntamento particular, a conversa rola solta. Falam de tudo, do crochê, do ensopado de peixe, do sermão de padre Cosme, dos últimos escândalos da cidadezinha. A vida por ali não tem muita novidade. Por isso mesmo o domingo é aquele acontecimento à beira da lagoa, entre disses-me-disses e um picolé do moleque Neco.

Fim da tarde, sol a pino, o povo começa a bater em retirada. Neco agora já pode se sentar um pouco. Está cansado mais que de costume. O sol foi de matar. Retira do bolso traseiro um saquinho cheio de notas. Arruma tudo direitinho que é pra prestar contas pra Seu Tião. Chama pelo irmão, entretido numa pelada ali na areia:

_ Vem cá, Osias, tome conta da “féria” que vou dar um mergulho...

Neco tira a camisa e a calça surrada. Já tem um calção de banho por baixo. Todo domingo tem por costume também tirar suas horinhas de lazer depois do “expediente”. Caminha para a água e se deixa levar pelo movimento ondulante. Deliciosa aquela sensação que conhece desde menininho, criado ali pelos arredores.

O corpo do garoto desliza suavemente pela água. As braçadas calculadas garantem o nado perfeito, Neco é um peixe... Todo mundo por ali fala. Já tinha ensinado muita criança a nadar.

Da areia, Osias segue o irmão com os olhos. Vê-o flutuar, desaparecer, flutuar, desaparecer, flutuar, desaparecer... desaparecer... desaparecer...

_ Necoooo!!!!!!!!, o grito ecoa pelas águas plácidas...

O povo, já pouco àquela hora, se ajuntou correndo. O que tinha acontecido? Deram com Osias chorando em desespero, apontando a lagoa. Não era preciso dizer mais nada. Todo mundo já sabia que desta vez ela tinha levado o menino Neco. O moleque era querido, criado por ali desde que nascera. No pequeno grupo consternado, a incredulidade diante do irremediável. Lágrimas rolam caladas. Dizer o quê? No ar denso da tarde, um último pregão ecoa e se perde sobre a orla e se espalha pelo silêncio da lagoa:

_ Óiiii, o picolé de laranjinha capeta...Quem vai querê?

MARINA ALVES
Enviado por MARINA ALVES em 29/01/2010
Reeditado em 29/01/2010
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