Rodoviária

Murilo dá o último nó em seu all-star, pega a mochila na cama, desliga o computador e vai pro ponto de ônibus.

Mariana liga pra Heloísa e pede pra ela não se esquecer do baralho.

Heloísa pede pra Mariana não se atrasar.

Osvaldo joga seu crachá na mochila e gira a chave do carro.

Patrícia está introspectiva. "Essa espinha tinha de nascer na véspera do desfile!?" Pensou, consultando um espelho de bolso a caminho do metrô.

Marcos e Camila estão estranhos um com o outro. Ainda não sabem se é uma boa idéia passar o feriado prolongado juntos, sozinhos, longe de todos. Andam se estressando com qualquer coisa que o outro fala. Parece que tudo virou motivo de hostilidade. Apostaram em um tempo pra pensar. Juntos, já que são um só. O amor os uniu. Mas ainda não sabem se é uma boa idéia. Ouvem a voz avisando que a Estação Tietê é a próxima, se entreolham e fortalecem o enlaçar de dedos antes de se levantarem.

Gilberto consulta o relógio. 16:40. Mais 30 minutos pra ele ir embora. Só o ônibus do Seu Osvaldo sair e ele está liberado. A noite promete!

O soldado Alan está feliz. Passar o feriado prolongado com a familía. "É tão difícil conseguir isso na corporação", pensa.

Sheila está cansada do trabalho que faz. "Acompanha batata grande mais um real?", "Cpf na nota?", "Sobremesa?". Mas a noite, at least, promete!

Murilo, conferindo a passagem, distraído, esbarra numa apressada Patrícia.

Patrícia, faminta, e por falta de opção, resolve matar a fome no último lugar que poderia comer.

Sheila ouviu os três "não" habituais de uma mocinha com rosto de boneca, que jogava o cabelo no rosto tentando disfarçar uma espinhazinha.

Viu um casal em silêncio passar puxando as malas. "E eu aqui, oferecendo batata, nota paulista e sobremesa."

Marcos, cheio de empatia, comentou com Camila, descendo a escada rolante, do olhar pesaroso da balconista da lanchonete para eles.

Camila comentou que eles deveriam ter comprado um baralho, depois que ouviu as risadas de duas amigas que se divertiam jogando truco, largadas no chão da rodoviária.

Mariana comenta que achou o menino do all-star gatinho.

Heloísa olha pra conferir.

Murilo fica sem graça com o olhar, disfarça, e vê a balconista da lanchonete descendo a escada rolante.

Gilberto sente o coração bater mais forte quando vê sua namorada balconista. Todo dia, no mesmo horário, ela vem buscá-lo.

Seu Osvaldo coloca o carro na vaga de número 5, do Terminal Rodoviário do Tietê.

Como sempre, na plataforma, Gilberto trabalha apressado e Sheila aguarda tocando sua bateria imaginária. Osvaldo analisa as pessoas que levará: Um rapaz tímido, provavelmente com as impressões digitais gastas de tanto videogame; Duas amigas, provavelmente ninfomaníacas; Um casal entediado, provavelmente na situação "ou vai ou racha" a que todos somos um dia submetidos; Uma loirinha bonitinha, que provavelmente participará do desfile no centro da cidade-destino; E um rapaz moreno, alto, biotipo de lutador, provavelmente um policial indo visitar a família.

Todos tinham o olhar voltado para o mesmo lugar. O olhar e os ouvidos:

- Mil quilômetros de distância...

- Eu te mando carta, te ligo.

- Mentira, nunca mandou, nem se importa.

- Mas vou mandar.

- Você nem sabe o meu endereço.

- Eu mando e-mail!

- Mentirosa.

- Eu te amo.

- Você mente, ama nada.

- Tá... Deixa eu subir então...

- Espera...

- Você tá apertando meu braço. Tenho que ir, senão vou ser abandonada aqui...

- Não vai, o motorista tá ali, prestando atenção na nossa conversa.

- Ele e todo mundo em volta, né!?

- É.

- Pára de brigar comigo, por favor!

- É mesmo a última vez que a gente está se vendo!?

- Não sei... Talvez sim, talvez não...

O motorista de ônibus viu o rapaz do casal passando a mão no cabelo, olhando pra trás, pro relógio, pro ônibus, enquanto falava. Largou a mochila no chão e abraçou a moça. Essa visão era freqüente e ele a apreciava. Não era uma tragédia, como algumas pessoas interpretavam, era algo mágico, bonito de se ver, porque era nesse momento, de perda, que os fragmentos que deixavam uma relação, não só de amor entre homem e mulher, mas no geral, frágil e hostil, eram juntados, transformados em uma coisa só, e dividos em duas partes iguais, de lembranças boas, sentimentos nobres, sinceros, cheios de cor e de vida.

Como previu, não tardou a armadura do rapaz ceder e ele cair em lágrimas. Ela também:

- Ainda não consigo acreditar que isso tá acontecendo.

- Eu também não. É tão ruim, estou sentindo um vazio crescendo dentro de mim.

- Você chorando!?

- É, eu choro, sabia!?

- É tão raro isso acontecer, sua coração de pedra!

- Você que é uma moça!

- Fica?

- Vem comigo?

- É foda! Eu queria ir! Mas a porra do trampo me prende! Preciso estudar, sei lá...

- É, eu sei... É meio incerto ainda, não sei se lá vai dar certo... Mas quem sabe, daqui há algum tempo? Você fica aqui, estuda! Quem ficar rico primeiro, busca o outro!

- Seria uma boa ficar rico LOGO, não sei se agüento ficar muito tempo longe de você...

- Também não. Mas se esforça, faz o que eu te pedi, escreve, escreve, escreve bastante, se nós não dermos certo, no futuro eu quero assinar uma revista e ver seu nome após o "editor chefe dois pontos" e lembrar de que eu, durante um tempo, fui a maior inspiração do editor chefe! Ah, agora tenho que ir mesmo...

- Vai lá, se cuida, e vai dar tudo certo. Vou te escrever, escrever pra você, e escrever por você. Eu te amo, sempre!

- Eu também... Lindo!

- Minha linda...

- Adorei nosso último dia!

- É, conseguimos dormir a noite inteira abraçados, acordamos no mesmo horário, conversamos, foi um dia perfeito, mas não foi o último! A gente é superior à isso.

- Somos... Tchau, se cuida!

- Tchau...

Patrícia decidiu que precisava de um namorado.

Marcos e Camila, de repente, se sentiram mais unidos.

Sheila recolocou os fones no ouvido.

Gilberto suspirou fechando o compartimento de bagagem.

Murilo lembrou do Grande Gatsby.

Mariana e Heloísa choraram.

Alan ficou introspectivo.

Osvaldo deu partida, engatou a ré e olhou nos olhos marejados do rapaz que ficou na plataforma, sentiu o lampejo de alguma coisa que não soube identificar e voltou a atenção ao seu trabalho.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/01/2010
Código do texto: T2057221
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